Direito e Pessoa no Mundo Digital - Algumas Questões

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JORNADAS COMEMORATIVAS DOS 25 ANOS EDUM

DIREITO E PESSOA NO MUNDO DIGITAL ALGUMAS QUESTÕES

Escola de Direito da Universidade do Minho



Direito e Pessoa no Mundo Digital Algumas Questões

EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação

Julho 2019



FICHA TÉCNICA

TÍTULO

Direito e Pessoa no Mundo Digital - Algumas Questões

COORDENADORES Luís Couto Gonçalves Cristina Dias Sónia Moreira Flávia Noversa Loureiro

Autores

Anabela Susana de Sousa Gonçalves | Francisco Andrade | Joana Covelo de Abreu | José C. Vegar Alves Velho | Margarida Santos | Sónia Moreira | Tiago Lopes de Azevedo

DATA DE PUBLICAÇÃO Julho de 2019

EDIÇÃO

Escola de Direito da Universidade do Minho Centro de Investigação em Justiça e Governação

PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA

Pedro Rito

ISBN

978-989-54194-9-4

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ÍNDICE

Prefácio vii O lugar do delito nas atividades ilícitas online e a delict oriented approach Anabela Susana de Sousa Gonçalves

1-16 O Documento electrónico revisitado face ao Regulamento (UE) 910/2014 (Regulamento EIDAS) Francisco Andrade

17-26 O desígnio da Justiça Eletrónica Europeia de 2019 a 2023 à luz do Contencioso da União – reflexões antecipatórias Joana Covelo de Abreu

27-45 Digitalizações e Analogismos – (Re)Produções e Equivalências José C. Vegar Alves Velho

47-57 A vítima e a Convenção de Istambul: (novos) desafios para o ordenamento jurídicopenal português, em especial no contexto dos crimes sexuais Margarida Santos

59-75 E-Health: desafios e problemas da telemedicina Sónia Moreira

77-92

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Limites normativos da celeridade no Direito das Contraordenações: do Direito de audição e defesa e o princípio da publicidade no procedimento contraordenacional comum e tributário Tiago Lopes de Azevedo

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PREFÁCIO

Direito e Pessoa no Mundo Digital - Algumas Questões

A publicação desta obra coletiva integra-se nas Comemorações dos 25 anos da Escola de Direito da Universidade do Minho e inclui várias das comunicações das Jornadas Comemorativas que se realizaram na nossa Escola no dia 15 de Março de 2019. As Jornadas subordinaram-se ao tema: Que Escola? Que Direito? Na primeira parte, Que Escola?, tivemos o prazer de rever antigos alunos que vieram dar o seu testemunho pessoal e profissional aos atuais estudantes; na parte Que Direito?, quisemos mostrar diferentes facetas do Direito que se trabalha hoje na Escola, através de uma conferência subordinada ao tema Direito e Pessoa no Mundo Digital, na qual participaram professores da casa em representação das várias áreas (das ciências jurídicas gerais, das ciências jurídicas privatísticas e das ciências jurídicas públicas). Colocamos todo o nosso empenho e entusiasmo na elaboração desta obra. Era importante deixar uma lembrança perene do muito que vivemos, crescemos e amadurecemos nestes 25 anos. Somos uma Escola jovem, mas que tem uma firme vontade de continuar a afirmar-se, de “fazer Escola”. Esperemos que esta publicação mereça a aprovação do leitor.

A Comissão Organizadora, Luís Couto Gonçalves Cristina Dias Sónia Moreira Flávia Noversa Loureiro

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O LUGAR DO DELITO NAS ATIVIDADES ILÍCITAS ONLINE E A DELICT ORIENTED APPROACH Anabela Susana de Sousa Gonçalves Prof.ª Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho Investigadora do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação

Resumo: O Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I bis) contém normas de competência internacional aplicáveis a matérias civis e comerciais. Entre estas disposições legais encontramos uma norma de competência especial aplicável em ​​ matéria de responsabilidade civil extracontratual (art. 7.º, n.º 2), que atribui competência ao tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu ou poderá ocorrer. Localizar o lugar do facto danoso nas atividades ilícitas ocorridas online é um grande desafio, pelas características específicas da Internet, nomeadamente, a sua natureza global e difusa e a disseminação mundial dos seus utilizadores. Consequentemente, a aplicação do art. 7.º, n.º 2, norma de competência tradicional de caráter localizador, à Internet exige um esforço de interpretação e adaptação da norma à realidade em causa. Este esforço tem sido feito pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e são estas interpretações que vamos analisar. Palavras-chave: Bruxelas I bis; delito; atividades ilícitas online; competência internacional.

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O lugar do delito nas atividades ilícitas online e a delict oriented approach Anabela Susana de Sousa Gonçalves

1. O Regulamento Bruxelas I bis A Internet tem um alcance global e as atividades que aí decorrem frequentemente têm características de internacionalidade, já que os seus elementos estão em contato com diferentes sistemas legais. Nos casos em que a atividade transnacional tem uma natureza ilícita, é necessário determinar qual o tribunal competente para decidir a indemnização por danos resultantes de tal atividade ilícita. Na União Europeia, o tribunal competente para decidir litígios transnacionais de natureza civil ou comercial resulta do Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I bis). O referido Regulamento é um dos instrumentos centrais da cooperação judiciária em matéria civil da União Europeia, na aceção do art. 81º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)1, e dispõe de normas de competência, reconhecimento e execução de decisões judiciais, instrumentos autênticos e transações judiciais em matéria civil e comercial entre Estados-Membros, nos termos do seu art. 1.º. Do seu âmbito de aplicação material excluem-se as matérias enumeradas no n.º 1 e n.º 2, da mesma disposição legal, tais como o estatuto e a capacidade jurídica das pessoas singulares; as questões patrimoniais decorrentes do casamento ou relações comparáveis; as obrigações alimentares decorrentes de relações familiares, parentesco, casamento ou afinidade; os testamentos e sucessões; as falências, concordatas e processos análogos; as matérias de segurança social; a arbitragem; as questões fiscais, aduaneiras e administrativas. As normas de competência estabelecidas no Regulamento Bruxelas I bis são aplicáveis quando o réu tem domicílio num Estado-Membro (art. 4.º). Caso contrário, aplicam-se as regras de competência de fonte nacional dos Estados, exceto nas situações abrangidas pelo n.º 1 do art. 6.º sempre que os tribunais de um Estado-Membro tenham competência, mesmo que o réu aí não tenha domicílio. Esse será o caso dos contratos de consumo (art. 18.º, n.º 1); dos contratos de trabalho (art. 21.º, n.º 2); das competências exclusivas (art. 24.º); e dos pactos de jurisdição (art. 25.º). O sistema de reconhecimento e execução previsto no Regulamento aplica-se às decisões proferidas nos Estados-Membros (art. 36.º) e aos instrumentos autênticos e às transações judiciais provindas dos Estados-Membros (art. 58º), dentro do âmbito de aplicação do Regulamento. No que diz respeito ao seu âmbito temporal, o Regulamento Bruxelas I bis é aplicável desde 10 de janeiro de 2015 (art. 81.º) e revogou o Regulamento 1 Sobre a cooperação judiciária em matéria civil, v. Anabela Susana de Sousa Gonçalves, «Cooperação em Matéria Civil», in Alessandra Silveira et al. (coord.), Direito da União Europeia, Elementos de Direito e Política da União, coord. Alessandra Silveira, Mariana Canotilho, Pedro Madeira Froufe, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 339-391.

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n.º 44/2001, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conhecido como Bruxelas I (art. 80.º). Face ao âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I bis, é possível concluir que este abrange as obrigações extracontratuais decorrentes de um ato ilícito. Em seguida, cabe determinar qual a norma de competência internacional aplicável às atividades ilícitas que produzem danos.

2. Normas de competência internacional A norma de competência geral, prevista no art. 4.º, n.º 1, estabelece que o autor deve propor a ação perante o tribunal do domicílio do réu (princípio actor sequitur forum rei). Além desta regra geral de competência, existem normas de competência especiais, previstas dos arts. 7º a 9º, baseadas no princípio de proximidade e que estabelecem foros alternativos. Estes foros têm em consideração a proximidade do tribunal com o litígio, a fim de salvaguardar as legítimas expetativas das partes e promover a boa administração da justiça. Considera-se que estas jurisdições estão espacialmente e processualmente melhor colocadas para julgar a questão, e presume-se que a proximidade entre o litígio e o foro garante maior facilidade na condução do processo, na produção das provas2 e satisfaz o princípio da confiança, já que permite a previsibilidade do foro, quer por parte do autor, quer por parte do réu. Uma dessas regras especiais de competência é relativa às matérias extracontratuais. Nos termos do art. 7.º, n.º 2, o lesante domiciliado num Estado-Membro pode também ser demandado no Estado-Membro em que o facto danoso ocorreu ou poderá ocorrer. Esta disposição legal é equivalente aos anteriores arts. 5º, n.º 3, do Regulamento Bruxelas I e da Convenção de Bruxelas de 1968 Relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (Convenção de Bruxelas). A concretização do lugar onde o facto danoso ocorreu ou poderá ocorrer em questões transnacionais de responsabilidade civil extracontratual trouxe algumas dificuldades de aplicação, pois pode haver uma dissociação espacial do facto danoso (ou seja, o lugar do facto ilícito pode não ser o mesmo que o lugar do dano resultante do comportamento ilícito), ou o lugar do facto danoso pode ser difícil de localizar ou, em última análise, poderemos estar perante um dano

2 Isto decorre da jurisprudência do TJUE, v., por exemplo, Melzer c. MF Global UK Ltd, C 228/11, 2013, §26; Coty Germany GmbH, formaly Coty Prestige Lancaster Group GmbH c. Furts Note Perfumes NV, C 360 / 12,2014, § 47; eDate Advertising GmbH c. X (C-509/09) e Olivier Martinez e Robert Martinez v. MGN Limited (C-161/10), C-509/09 e C-161/10, RE 2011, p. I-10269; Zuid-Chemie BV c. Philippo’s Mineralenfabriek NV / SA, C-189/08, RE 2009, p. I-06917.

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reflexo34. Chamado a interpretar o conceito de lugar onde o facto danoso ocorreu ou poderá ocorrer, o TJUE decidiu que o autor tem a opção de propor a ação, quer nos tribunais do lugar do facto que dá origem à situação de responsabilidade extracontratual e está na origem dos danos, quer perante os tribunais do lugar onde ocorreu o dano5. O TJUE refletiu ainda sobre o conceito de dano para efeitos da aplicação do art. 7.º, n.º 2, tendo concluído que o dano relevante é apenas o dano direto, o lugar onde ocorre o dano inicial6, como o lugar do dano onde ocorreram os resultados diretos da ação ou da omissão que originou o dano. Assim, o lugar da ocorrência do dano direto, no sentido da jurisprudência do TJUE, será o lugar onde ocorreram os efeitos diretos do facto que gerou a situação de responsabilidade, o lugar onde esses efeitos diretos são produzidos, o lugar que se traduz na violação do direito protegido7. A opção do autor escolher os tribunais do lugar do facto que dá origem ao dano ou os tribunais do local onde ocorreu o dano é determinada pela extensão da competência de cada tribunal. O tribunal do lugar da conduta ilícita tem competência para decidir o ressarcimento de todos os danos resultantes desse

3 Identificando estes problemas, v. Hélène Gaudemet-Tallon, Compétence et exécution des jugements en Europe, Matières Civile et Commerciale, 5.ª ed., Paris, LGDJ, 2015, p. 275. 4 Relativamente ao dano reflexo, v. Anabela Susana de Sousa Gonçalves, Da responsabilidade extracontratual em Direito Internacional Privado, A mudança de paradigma, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 388-390; idem, «O caso Florin Lazar e o conceito de dano no Regulamento n.º 864/2007 relativo à Lei Aplicável às Obrigações Extracontratuais (Roma II)», em Cláudia Sofia Melo Figueiras et al. (ccord.) in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Cândido Oliveira, Coimbra, Almedina, 2017. 5 V., por exemplo, Handelskwekerij G. J. Bier B.V. c. Mines de Potasse d’Alsace S.A., 21/76, RE 1735, relativamente à disposição legal paralela da Convenção de Bruxelas, o art. 5.º, n.º 3. De acordo com o TJUE, a jurisprudência deste tribunal sobre as normas da Convenção de Bruxelas deve aplicar-se aos artigos equivalentes do Regulamento Bruxelas I: neste sentido, entre outros, TJUE, Zuid-Chemie, Cit.; Verein für Konsumenteninformation c. Karl Heinz Henkel, C-167/00, ER 2002, p. I-08111; TJUE, Rudolf Kronhofer c. Marianne Maier e outros, C-168/02, RE 2004, p. I-06009. 6 TJUE, Zuid-Chemie, Cit.; Rudolf Kronhofer, Cit.; TJUE, Dumez France SA and Tracoba SARL c. Hessische Landesbank and others, C-220/88, RE 1990, p. I-00049. 7 TJUE, Antonio Marinari c. Loyd´s Bank and Zubaidi Trading Company, C-364/93, ER 1995, p. I-2719; TJUE, Dumez France SA and Tracoba SARL c. Hessische Landesbank and others, C-220/88, RE 1990, p. I-49; TJUE, Rudolf Kronhofer, Cit.; Réunion européenne SA and o. c. Spliethoff´s Bevrachtingskantoor BV and the Master of the vessel “Alblasgracht, C-51/97, RE 1998, p. I-6511; TJUE, Danmarks Rederiforening, acting on behalf of DFDS Torline A/S c. LO Landsorganisationen i Sverige, acting on behalf of SEKO Sjöfolk Facket for Service och Kommunikation, C-18/02, RE 2004, p. I-1417; TJUE, Zuid-Chemie, Cit., p. I-06917.

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comportamento, enquanto o tribunal do lugar do dano só tem competência para decidir sobre os danos que ocorram no seu território8. Ora, apesar destas precisões do TJUE sobre o lugar do facto danoso, considerando as características específicas da Internet, a sua natureza global e difusa, não é fácil estabelecer o lugar onde ocorre o facto danoso, quando a atividade ilícita ocorre online, porque esta atividade pode ter alcance mundial e produzir efeitos em qualquer lugar do mundo. O Regulamento Bruxelas I bis não possui uma regra específica para os factos danosos ocorridos online, portanto, é necessário interpretar o art. 7.º, n.º 2, para o conseguirmos aplicar a atividades que geram situações de responsabilidade extracontratual e ocorrem na Internet.

3. A aplicação do art. 7.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas II bis a atividades ilícitas online A Internet tem um alcance global e uma natureza difusa, o que significa que seus utilizadores estão localizados em todo o mundo. Estas características únicas da Internet implicam que uma atividade na Internet pode ter efeitos em qualquer lugar do mundo, permitindo que estas tenham um impacto espacial de longo alcance. Estas características significam que é necessário proceder a uma adaptação na interpretação das regras tradicionais de competência que têm uma natureza territorial. O TJUE já foi chamado para esclarecer o conceito de lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, previsto no art. 7.º, n.º 2, em relação a atividades ilícitas online, e é esta jurisprudência que passaremos em seguida a analisar.

3.1. O lugar do facto ilícito 3.1.1. A primeira questão que vamos analisar é a concretização do lugar do facto ilícito quando está em causa a violação de um direito de personalidade. Para esse efeito, é necessário olhar, em primeiro lugar, para o caso eDate. Neste, o TJUE abordou uma situação de violação online de um direito de personalidade, onde reconheceu a especificidade da natureza ubíqua da internet e o seu alcance mundial. O TJUE ponderou o impacto de um conteúdo que foi colocado online sobre os direitos de personalidade de um indivíduo e a grande amplitude dos danos que se podem produzir. Neste caso, o TJUE manteve a interpretação do art. 5.º, n.º 3, de Bruxelas I: o autor pode propor uma ação para ressarcimento de

8 TJUE,, Fiona Shevill, Ixora Trading Inc., Chequepoint SARL and Chequepoint International Ltd c. Presse Alliance SA, C-68/93, RE 1995, p. I-415.

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todos os danos sofridos no tribunal do lugar do evento ou nos tribunais de cada um dos Estado-Membro onde o dano ocorreu9. Quanto ao lugar do evento que deu origem ao dano foi considerado que este seria o lugar do estabelecimento do editor de conteúdo da publicação difamatória, porque foi o lugar onde foi tomada a decisão do upload do conteúdo online10. 3.1.2. No caso Wintersteiger11 foi discutido um delito online, mas agora uma situação de violação de um direito de propriedade intelectual. Neste caso, quanto ao conceito do lugar do facto que deu origem à violação de um direito de propriedade intelectual e, especificamente, a uma marca, o TJUE considerou que “um litígio relativo à alegada violação de uma marca registada num Estado-Membro em virtude da utilização, por um anunciante, de uma palavra-chave idêntica à referida marca no sítio Internet de um motor de busca que opera sob um nome de domínio nacional de topo de um outro Estado-Membro pode igualmente ser submetida aos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar da sede do anunciante”12. Assim, o elemento importante para determinar a competência é o local da sede do lesante, o local onde praticou os factos ilícitos que deram origem ao dano. Note-se que para o TJUE, o lesante é “(…) o anunciante, ao selecionar a palavra-chave idêntica à marca, e não o prestador do serviço de referenciamento, que a utiliza no decorrer do comércio (…). O facto gerador de uma eventual violação do direito das marcas reside, portanto, no comportamento do anunciante que recorreu ao serviço de referenciamento para a sua própria comunicação comercial”13. O TJUE ponderou outras hipóteses para concretizar o lugar do facto que deu origem ao dano, como o lugar do servidor, porque o ato que deu origem ao dano (o desencadear do processo técnico de afixação pelo anunciante) aconteceu num servidor que pertencia ao operador do motor de busca que o infrator escolheu para usar14. No entanto, além da incerteza do local da sede desse servidor, que seria imprevisível15, o TJUE concluiu que a sua localização tinha pouca ligação com o evento causal que deu origem ao dano. O local da decisão do ato 9 eDate Advertising GmbH, Cit., §41. 10 eDate Advertising GmbH, Cit., § 42. 11 Wintersteiger AG v. Producuts 4USondermaschinenbau GmbH, C-523/10, 2012. 12 Wintersteiger AG, §38. 13 Idem, ibidem. 14 Também no caso Football Dataco Ltd and Others v. Sportradar GmbH et Sportradar AG, C-173/11, 2012, o TJUE declarou a irrelevância do território do Estado onde está situado o servidor da Internet a partir do qual os dados em questão são enviados. 15 Wintersteiger AG, Cit., § 36.

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foi considerado pelo TJUE como um lugar certo e identificável, o que facilita a apresentação de provas e a organização do processo16. Também aqui o critério para determinar o lugar do facto ilícito foi a previsibilidade do foro, de acordo com o princípio da proximidade. 3.1.3. No caso de Pez Hejduk, o TJUE confirmou a orientação anteriormente assumida no caso Wintersteiger em relação ao evento causal. A disputa envolveu a disponibilização online para consulta e download de fotografias no site de uma empresa (EnergieAgentur), sem a autorização do autor das mesmas fotografias, que vem perante o tribunal pedir o ressarcimento dos danos sofridos pela violação de direitos conexos com o direito de autor17. Como evento causal (o facto que dá origem ao dano) da violação online de direitos de autor, numa situação de colocação de fotografias na Internet sem o consentimento do autor, o TJUE considerou determinante o comportamento do proprietário do site que desencadeou o processo técnico de exibição das fotografias na Internet: a ativação do processo técnico para a exibição das fotografias18. Assim, o local do evento causal foi o local onde o lesante (a empresa cujas ações infringiram o direito do autor) tem a sua sede (Alemanha), já que foi aí que foi decidida e executada a decisão de colocar as fotografias online19.

3.2. O lugar do centro de interesses do lesado 3.2.1. O critério do lugar do centro de interesses do lesado como fator de competência para determinar o lugar do facto danoso ocorrido online foi ensaiado pela primeira vez pelo TJUE para os delitos que consistem na violação de direitos de personalidade e até hoje apenas para este tipo de delitos. A primeira vez foi no caso eDate, em que o TJUE tentando adaptar a interpretação do art. 5.º, n.º 3, de Bruxelas I à natureza da Internet, reconheceu que um conteúdo que é colocado online pode ser consultado em todo o mundo, o que aumenta o impacto do dano, e que “(...) nem sempre é possível, no plano técnico, quantificar essa difusão com certeza e fiabilidade relativamente a um Estado-Membro em particular, nem, por conseguinte, avaliar o dano exclusivamente causado nesse Estado-Membro”20. Consequentemente, o Tribunal de Justiça considerou que outra jurisdição deveria ter competência para decidir o ressarcimento de todos

16 Wintersteiger AG, Cit., § 37. 17 Pez Hejduk c. EnergieAgentur.NTW GmbH, Processo C-441/13, 2015. 18 Pez Hejduk, Cit., §24. 19 Pez Hejduk, Cit., § 25. O tribunal era na Áustria, onde Hejduk tinha a sua residência. 20 eDate Advertising GmbH, Cit., § 46.

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os danos causados: o tribunal do lugar em que a vítima tem o seu centro de interesses21. O centro de interesses da vítima geralmente será o lugar da sua residência habitual, mas o TJUE admitiu que também pode ser o lugar onde a vítima prossegue a sua atividade profissional, se a pessoa tem uma relação particularmente estreita com esse Estado22. A competência do tribunal do lugar do centro de interesses da vítima é justificada pelo TJUE, de acordo com o princípio de proximidade e a necessidade de previsibilidade subjacente às regras de competência: no caso, o editor do conteúdo nocivo está em condições de saber onde é o centro dos interesses da pessoa que vai sofrer o dano. Note-se, todavia, que o TJUE, tem-se recusado a aplicar o critério do centro de interesses do lesado a outro tipo de delitos ocorridos online. No caso Wintersteiger23, onde se discutiu a violação online de um direito de propriedade intelectual é um exemplo disso. Chamado a determinar o lugar onde ocorreu o evento danoso, o TJUE não utilizou o critério do centro de interesses, considerando que este apenas releva no contexto específico da violação dos direitos de personalidade: esta decisão foi justificada pelo objetivo de previsibilidade de jurisdição24 e porque os direitos da personalidade são protegidos em todos os Estados-Membros, enquanto a “(…) a proteção conferida pelo registo de uma marca nacional, está, em princípio, limitada ao território do Estado-Membro de registo, pelo que, regra geral, o seu titular não pode invocar a referida proteção fora desse território”25. Assim, a justificação da aplicação do centro de interesse em casos de violação de direitos de personalidade, e a exclusão do mesmo fator no caso de violação de uma marca nacional, é a previsibilidade da jurisdição de acordo com a distribuição geográfica de proteção de cada direito, que permite que o requerente e o requerido possam prever onde um pode propor a ação e o outro pode ser processado, respetivamente. 3.2.2. No caso Bolagsupplysningen, o TJUE tem oportunidade de interpretar novamente o conceito lugar da ocorrência do facto danoso numa situação de violação transfronteiriça de direitos de personalidade através da Internet. Neste caso, uma pessoa singular e uma pessoa coletiva invocam a violação de direitos de personalidade através da publicação de conteúdos com informações falsas relativamente a ambos numa página da Internet e da não eliminação de co21 eDate Advertising GmbH, Cit., § 48. 22 eDate Advertising Gm possível recorrer aos tribunais de cada um dos Estados-Membros em cujo território a informação é ou foi acessível bH, Cit., § 49. 23 Wintersteiger AG v. Producuts 4USondermaschinenbau GmbH, C-523/10, 2012. 24 Permite que o autor identifique facilmente em qual tribunal pode propor a ação e o réu razoavelmente possa prever em qual tribunal terá de se defender: Wintersteiger AG, § 22-24. 25 Wintersteiger AG, § 25.

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mentários negativos a seu respeito, pedindo, em consequência, a retificação das informações, a supressão de comentários e o ressarcimento dos danos sofridos em resultado daquela publicação. No caso referido, o tribunal volta a afirmar o lugar do centro de interesses do lesado como o “lugar onde o impacto real de uma publicação na Internet e a sua natureza lesiva ou não melhor podem ser apreciados por um tribunal”26, devendo este tribunal apreciar a globalidade do dano sofrido em nome da boa administração da justiça27. Neste caso, o TJUE reitera que objetivo desta interpretação é garantir a previsibilidade do foro, possibilitando que o autor e o réu o consigam identificar mais facilmente28. O lugar principal do exercício das atividades da pessoa coletiva será aquele que é mais identificável com a pessoa; onde a sua reputação está mais sedimentada e onde a interessa preservar; onde se verificam as maiores repercussões económicas, e sobre a atividade da pessoa coletiva, em caso de violação da reputação da mesma. No caso concreto, a sede estatutária da pessoa coletiva situava-se na Estónia, mas a maior parte das suas atividades era desenvolvida na Suécia, sendo, por isso, o dano à reputação da pessoa mais sentido neste último Estado-Membro29. Logo, os tribunais suecos (lugar do Estado do lugar do exercício da maior parte das atividades económicas da sociedade e onde a sociedade tem a sua reputação sedimentada) seriam os mais próximos para julgar a violação do direito, porque o direito foi violado no seu território. Já no caso da pessoa singular foi reiterado que o centro de interesses corresponde geralmente à sua residência habitual, ainda que possa corresponder ao lugar do exercício da sua atividade profissional, caso exista uma ligação estreita com esse Estado30.

3.3. O lugar do dano 3.3.1. O tribunal do lugar do dano tem também competência no âmbito do art. 7.º, n.º 2, mas apenas para decidir relativamente aos danos que ocorrem no seu território. A localização do dano ocorrido online não é uma tarefa fácil. Comecemos pela situação de violação online dos direitos de personalidade, como sucedeu no caso eDate. Como referimos, neste caso houve uma violação online dos direitos da personalidade, através de uma publicação numa página da Internet. Ora, o TJUE entendeu que os danos ocorreram em cada um dos Esta-

26 TJUE, Bolagsupplysningen OÜ, Ingrid Ilsjan, Cit., §37. 27 Idem, ibidem, §38. 28 Idem, ibidem, §35. 29 Idem, ibidem, §41. 30 Idem, ibidem, §35.

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do-Membros em cujo território é ou foi acessível o conteúdo colocado online31 (aquilo que se denomina de scattered torts), e cada tribunal tem competência em relação aos danos causados no seu território. Esta orientação vai ao encontro da jurisprudência do TJUE, afirmada no acórdão de 7 de março de 1995, relativamente ao caso Shevill32. Este era um caso de difamação transfronteiriça através de um artigo de imprensa escrita, distribuído em França e em Inglaterra. Para a determinação do lugar onde ocorreu o facto danoso, conceito presente no art. 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, decidiu o TJUE que o lesado poderia propor a ação nos tribunais de cada Estado em que a publicação foi difundida, como lugar da lesão do bem jurídico, sendo que cada tribunal apenas julgaria os danos causados no território do Estado a que pertencem33 (Mosaikbetrachtung ou mosaic approach). No entanto, numa violação online de um direito de personalidade através de uma publicação difamatória, a dificuldade de identificar e quantificar com certeza e precisão como os danos foram distribuídos num determinado Estado-Membro, e quais foram os danos nesse Estado em particular, determinou o desenvolvimento do critério do centro de interesses do lesado, como referimos supra. De acordo com o TJUE “parece, assim, que a Internet reduz a utilidade do critério relativo à difusão, na medida em que o âmbito de difusão de conteúdos colocado em linha é, em princípio, universal”34, uma vez que o conteúdo coloca-

31 eDate Advertising GmbH, Cit., § 51. 32 TJUE, «Fiona Shevill, Ixora Trading Inc., Chequepoint SARL e Chequepoint International Ltd c. Presse Alliance SA.», proc. C-68/93, de 07.03.1995, CJUE 1995 - I, pp. 415 e segs. A decisão também pode ser consultada, juntamente com a opinião do advogado geral Marco Darmon, em ECJ, Jurisdiction and Enforcement of Judgments in Civil and Commercial Matters, ECJ Judgments, Vol. I, Edited by Paolo Galizzi, London, British Institute of International and Comparative Law, 2002, pp. 508 e segs. Referindo-se ainda a esta questão e à decisão em causa, v. Sergio M. Carbone, Il nuovo spazio…, pp. 89-90; Hélène Gaudemet-Tallon, Compétence et Exécution des Jugements en Europe, Règlement nº 44/2001, Conventions de Bruxelles et de Lugano, 3.ª ed., Paris, L.G.D.J., 2002, pp. 177-179; Miguel Angelo Lupoi, Conflitti transnazionali di giurisdizioni, Policies, método, criteri di collegamento, t. I, Milano, Giuffrè Editore, 2002, pp. 533 e segs; Luigi Mari, Il diritto processuale civile della Convenzione di Bruxelles, Il sistema della competenza, I, Padova, Cedam, 1999, pp. 393 e segs; Francesco Salerno, Giurisdizione ed efficacia delle decisioni straniere nel regolamento (CE) n. 44/2001 (La revisione della Convenzione di Bruxelles del 1968), 3.ª ed., Padova, Cedam, 2006, pp. 157 e segs; Peter Stone, Civil Jurisdiction and Judgments in Europe, United Kingdom, Longman, 1998, pp. 65-66. 33 O mesmo princípio foi afirmado posteriormente na decisão do TJUE, «eDate Advertising GmbH c. X, Olivier Martinez, Robert Martinez c. MGN Limited», proc. apensos C-509/09 e C-161/10, de 25.11.2011, onde se afirma a competência do tribunal de cada Estado-membro em cujo território o conteúdo difamatório esteja ou tenha estado em linha, enquanto lugar do dano, estando esta competência limitada aos danos produzidos neste território. 34 eDate Advertising GmbH, Cit., § 46.

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do na Internet pode ser consultado imediatamente por um número indeterminado de utilizados localizados em todo o mundo. No caso Bolagsupplysningen, o tribunal recuou na aplicação da mosaic approch, ensaiada anteriormente para definir o lugar do dano no caso eDate, quando está em causa a violação online dos direitos de personalidade, e optou definitivamente pelo critério do lugar do centro de interesses do lesado. Para o efeito, teve conta a natureza ubiquitária dos dados colocados na Internet e o alcance universal da Internet que torna impossível recorrer aos tribunais de cada um dos Estados-Membros em cujo território a informação é ou foi acessível35. Resta saber se o TJUE manterá esta posição para todas as situações de violação online de direitos de personalidade ou apenas nos casos que tenham as mesmas características daquelas presentes no acórdão Bolagsupplysningen: quando há pedidos de retificação da publicação de dados incorretos e a eliminação dos comentários relativamente a uma pessoa, colocados numa página da Internet, enquanto pedido uno e indivisível. Resta-nos aguardar por futuras decisões sobre esta matéria. 3.3.2. No caso Wintersteiger36, onde houve uma violação de um direito de propriedade intelectual (uma marca), ao determinar o lugar onde ocorreu o dano, o tribunal decidiu que “(...) tanto o objetivo de previsibilidade como de boa administração da justiça militam a favor da atribuição de uma competência, a título de materialização dos danos, aos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o direito em causa é protegido”37. Esses tribunais poderiam apurar e decidir todos os danos, porque todos os danos referentes àquele direito iriam ocorrer no país em que o direito foi protegido pelo registo. Este caso envolveu uma marca registada num Estado-Membro e o TJUE decidiu que o autor poderia propor a ação nos tribunais do Estado-Membro em que a marca foi registada, enquanto tribunal do lugar onde ocorreu o dano. 3.3.3. No caso de Peter Pinckney38, houve uma violação de direitos de autor, cometido através de conteúdo colocado online. O autor de uma obra musical, residente em França, pediu uma indemnização nos tribunais franceses, contra uma empresa com sede na Áustria, que reproduziu neste país, a música num suporte material que foi posteriormente introduzido no mercado, através da Internet, por uma empresa (estabelecida no Reino Unido), utilizando um site que era acessível na França (local do foro). Assim, neste caso, foi necessário localizar o local do dano, para determinar se os tribunais franceses tinham jurisdição. 35 Bolagsupplysningen, § 49. 36 Wintersteiger AG, Cit. 37 Wintersteiger AG, § 27. 38 Peter Pinckney v. KDG Mediatech AG, C-170/12, 2013.

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Mantendo uma abordagem com base na análise da natureza do delito, o TJUE olhou para o direito violado e observou que os direitos de autor estão sujeitos ao princípio da territorialidade, mas estão protegidos em todos os Estados-Membros, especialmente por causa da Diretiva 2001/29, “(…) embora sejam suscetíveis de serem violados, respetivamente, em cada um deles, em função do direito material aplicável”39. Como consequência, concluiu o TJUE, que os danos podem ocorrer na jurisdição do tribunal onde foi proposta a ação (na França) porque os direitos de autor foram protegidos nesse território, e o risco de violação surge “(…) da possibilidade de se procurar, através do sítio da Internet acessível no território do órgão jurisdicional chamado a decidir, uma reprodução da obra à qual estão ligados os direitos que o requerente invoca”40. Neste caso, o tribunal só poderia apurar os danos ocorridos no seu território. 3.3.4. No caso Pez Hejduk, o TJUE confirmou a orientação anteriormente assumida no caso Peter Pinckney em relação ao lugar da materialização do dano. Tal como no processo Pinckney, o TJUE voltou a afirmar que os direitos de autor estão sujeito ao princípio da territorialidade e que, por isso, podem ser violados em cada Estado-Membro onde são protegidos, tendo em conta o direito aplicável41. Foi reafirmado que o local da materialização do dano pode variar de acordo com a natureza do direito violado e que o risco de dano se materializar em certo local está dependente do facto de o direito cuja violação está em causa ser protegido nesse Estado42, ou seja, está dependente do âmbito de proteção geográfico do direito. Assim, numa situação de violação online de direitos de autor, o local da materialização do dano ou do risco dessa materialização, é o Estado a partir do qual é possível aceder às fotografias (através da página de Internet da empresa), uma vez protegido os direitos de autor nesse Estado43. No entanto, como também especificado anteriormente, o tribunal do lugar do dano só pode conhecer os danos ocorridos no seu território de acordo com o princípio da territorialidade, pois “estão mais bem colocados, por um lado, para avaliar se os referidos direitos garantidos pelo Estado-Membro em causa foram efetivamente violados e, por outro lado, para determinar a natureza do dano causado”44.

39 Peter Pinckney, Cit., § 39. 40 Peter Pinckney, Cit., § 44. 41 TJUE, Pez Hejduk c. EnergieAgentur.NTW GmbH, Processo C-441/13, de 22.01.2015, § 22. 42 Pez Hejduk, Cit., § 29. 43 Pez Hejduk, Cit., § 34. 44 Pez Hejduk, Cit., § 37.

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3.3.5. No caso Concurrence SARL, discutiu-se a competência para resolver um litígio sobre a violação de proibições de revenda fora de uma rede de distribuição seletiva, através de ofertas em vários sites da Internet, explorados em vários Estados-Membros45. A Concurrence tinha como atividade comercial a venda a retalho de produtos eletrónicos através de um estabelecimento situado em Paris e num site de vendas online (concurrence.fr). Esta empresa celebrou um contrato de distribuição seletiva com a Samsung para vender produtos de gama alta (gama ELITE) em França. Este contrato proibia a Concurrence de vender na Internet os produtos em causa. Foi precisamente a violação dessa cláusula de exclusividade que a Samsung invocou e usou como base para cessar a mencionada relação comercial, porque a Concurrence estava a comercializar os produtos ELITE na sua página da Internet. Por sua vez, a Concorruence contestou a licitude das cláusulas do contrato, alegando que não foram aplicadas de modo uniforme a todos os distribuidores, alguns dos quais comercializavam os produtos em causa em diferentes sites da Amazon sem que houvesse reação por parte da Samsung. Depois disso, a Concurrence propôs uma ação perante o Tribunal de Comércio de Paris, solicitando o decretamento de medidas provisorias, a declaração de que a cláusula de proibição de vendas online lhe era inoponível e, em consequência, que a Samsung fosse condenada a continuar a entregar-lhe os produtos abrangidos por esse contrato. Além disso, a Concurrence propôs uma ação contra a Amazon para obter uma medida provisória exigindo que a Amazon retirasse dos seus vários sites (incluindo as páginas da Amazon com nomes de domínio franceses, alemães, britânicos, espanhóis e italianos) a oferta de vendas de tais produtos Samsung. A questão que foi apresentada ao TJUE tratava-se precisamente de saber se os tribunais franceses tinham competência para conhecer de um processo contra as páginas de Internet da Amazon que operam fora do território desse Estado-Membro, como tribunal do lugar da ocorrência dos danos. Do contrato de distribuição seletiva resultava que: o distribuidor assumiu a obrigação de vender os produtos num determinado território (neste caso, a França); o produtor dava ao distribuidor o direito à distribuição exclusiva dos seus produtos no mesmo território e assumia a obrigação de não distribuir os produtos fora da rede de vendas do distribuidor. No caso de incumprimento das cláusulas de exclusividade decorrentes do contrato de distribuição seletiva, inclusive através de sites na Internet, o TJUE concluiu que dano que a distribuidora poderia invocar seria a redução do volume das vendas como consequência das vendas que são realizadas em violação das condições da rede e a subsequente 45 Concurrence SARL v. Samsung Electronics France SAS, Amazon Services Europe Sàrl, C618/15, 2006.

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perda de lucros. Este prejuízo ocorre no domínio geográfico da proteção do direito, ou seja, no território em que, por acordo, foi concedido o direito de distribuição exclusiva e onde se verifica uma redução do volume de vendas do distribuidor em consequência da violação da cláusula de exclusividade. De acordo com o TJUE “para efeitos de atribuição da competência judiciária conferida por essa disposição para conhecer de uma ação de responsabilidade por violação da proibição de venda fora de uma rede de distribuição seletiva resultante da oferta, em sítios Internet que operam em diferentes Estados-Membros, de produtos que são objeto da referida rede, (…) o lugar onde ocorreu o dano deve ser considerado como sendo o território do Estado-Membro que protege a referida proibição de venda através da ação em causa, território em que o demandante alega ter sofrido uma redução das suas vendas”46.

4. Conclusões A interpretação do art. 7.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas I bis é um exemplo de como as regras tradicionais de competência internacional, pensadas do ponto de vista da localização, exigem um esforço de adaptação para serem aplicáveis à Internet, devido às características da rede: alcance global, ubiquidade, localização dos seus utilizadores em todo o mundo. O ponto de partida para a interpretação do lugar onde ocorreu o facto danoso baseia-se no princípio de proximidade, na certeza e previsibilidade, na boa administração da justiça, na eficaz produção de prova e na organização útil do processo. Estes elementos justificam a atribuição de competência: aos tribunais de lugar do evento que dá origem e está na origem desse dano (para ressarcimento de todos os danos); e aos tribunais do local do dano (para ressarcimento apenas dos danos ocorridos no seu território). O lugar do evento que dá origem ao dano é possível concluir da análise da jurisprudência do TJUE que é o lugar do evento causal, ou seja, é o lugar do estabelecimento do infrator que ilicitamente coloca o conteúdo online. Assim é porque é considerado determinante o lugar onde foi decidido a prática do comportamento ilícito. Este será o lugar do evento causal, sendo um lugar certo e identificável, o que determina a previsibilidade do foro, facilita a apresentação de provas e a organização do processo, estando de acordo com o princípio da proximidade. No caso da violação online de um direito de personalidade por difamação, o lugar do facto danoso será o lugar do estabelecimento do editor do conteúdo, uma vez que foi a partir daí que a difamação foi expressa e posta em circulação 46 Concurrence SARL, Cit., § 35.

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online. Na violação online de um direito de propriedade intelectual resultante de uma marca registada, o lugar do facto danoso será o lugar da sede do anunciante, porque foi nesse local que o lesante decidiu praticar os factos que deram origem ao dano. Na violação de direitos de autor, pela utilização online de fotografias sem o consentimento do autor, o lugar do facto danoso será o lugar da sede, pois foi aí que a resolução de colocar as fotografias na Internet foi decidida e executada. O raciocínio comum a todas as situações apresentadas e decididas pelo TJUE é que o lugar do evento que dá origem ao dano, o lugar do evento causal, é o lugar da decisão e onde praticadas as ações que originaram a violação do direito. Já para determinar o lugar do dano, o TJUE desenvolveu uma abordagem orientada em função do delito, uma delict oriented approach. Isto que significa que o lugar onde o dano ocorreu pode ser diferente de acordo com a natureza do direito violado. O lugar do dano é o lugar onde foi produzido o dano direto como resultado de um evento danoso ou da omissão que originou o dano, que varia de acordo com a natureza do direito violado e o âmbito de proteção geográfica do direito violado. É assim porque o risco de o dano se materializar em certo local está dependente da condição de o direito em causa estar protegido nesse Estado. Este critério está relacionado com a identificação do tribunal que está melhor posicionado, que tem uma maior conexão para apreciar a violação do direito em causa. Concretizando a materialização do dano na Internet, no caso da violação de direitos de personalidade, o dano ocorre em cada Estado em que o conteúdo colocado ilicitamente online é acessível. No entanto, uma vez que o impacto danoso desse conteúdo é muito extenso nos direitos de personalidade do indivíduo, devido ao alcance global da internet, o tribunal do lugar do centro de interesse do lesado pode apreciar a totalidade do dano. Efetivamente, no caso Bolagsupplysningen, o TJUE, e neste tipo de delitos, coloca de lado o lugar do dano, para optando de forma clara pelo lugar do centro de interesses do lesado. Já no caso de um direito de propriedade intelectual protegido por um ato de registo, o dano materializa-se no Estado em que o direito é protegido pelo registo, porque a proteção do registo está limitada ao território desse Estado. No caso dos direitos de autor, o dano ocorre no Estado em que o direito é protegido e em cujo território é acessível o site em que se reproduzem ilicitamente as obras abrangidas pelos direitos violados. Em caso de violação das proibições de revenda fora de uma rede de distribuição seletiva e num mercado, através de ofertas online em vários sítios da Internet em vários Estados-Membros, os danos ocorrem no território em que, por acordo, foi concedido o direito de distribuição exclusiva e onde se verificou uma redução no volume de vendas da distribuidora como resultado da violação da cláusula de exclusividade. Assim, nos casos em que as atividades online causam danos, o lugar onde ocorre o dano, varia de acordo com a natureza do direito violado e o alcance da 15


proteção geográfica desse direito, o que implica por parte do tribunal que está a tentar apurar o lugar do dano uma análise do delito, da natureza do direito violado, e da sua área de proteção geográfica. É assim, porque o risco da existência de danos ocorridos em um determinado lugar depende da condição de o direito em questão estar protegido naquele Estado. Essa abordagem orientada em função do delito (delict oriented approach), levando em consideração a área de proteção geográfica do direito violado, é justificada pela necessidade de identificar o tribunal melhor posicionado para apreciar o direito em causa. Esta abordagem orientada em função do delito será também uma interpretação útil para o apuramento da lei aplicável ao delito que ocorre online, pois o art. 4.º, n.º 1, Regulamento n.º 864/2007 relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) manda aplicar, na ausência de electio iuris, a lei do lugar do dano.

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O DOCUMENTO ELECTRÓNICO REVISITADO FACE AO REGULAMENTO (UE) 910/2014 (REGULAMENTO EIDAS) Francisco Andrade Professor Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho Investigador do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação

Resumo: A crescente utilização de documentos digitais nas mais variadas atividades humanas traz consigo a necessidade de (re)equacionar a utilização das provas digitais, sua admissibilidade como meio de prova em juízo e o seu valor probatório. Palavras-chave: Documento; documento electrónico; assinatura electrónica; prova.

1. Introdução A generalização progressiva de procedimentos eletrónicos, processamento, comunicação e arquivamento de mensagens e ficheiros digitalizados torna indispensável a consideração da problemática dos documentos electrónicos, da sua admissibilidade como meio de prova e do seu valor probatório. Estamos a referir-nos a documentos desmaterializados que se consubstanciam em bits, “0”s e “1”, e que circulam através das redes digitais e são armazenados nas memórias dos computadores1. 1 Cfr. Armindo Ribeiro Mendes, «Valor probatório dos documentos emitidos por computador», in Colóquio Informática e Tribunais, editado pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado, da Procuradoria-Geral da República, Lisboa 1991, pág. 497.

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Deste modo, poderão nem sequer ser utilizados – e não têm que existir – documentos em papel. Pelo que se há-de levantar necessariamente a questão de se saber se tais documentos desmaterializados são admissíveis como meio de prova documental em tribunal e qual o seu valor de prova2, atendendo necessariamente aos requisitos de segurança e confiabilidade deste novo tipo de documento e à posição central que o mesmo desempenha na nova realidade empresarial e jurídica decorrente da Sociedade da Informação e do Conhecimento. Esta nova Sociedade da Informação, dominada pela tecnologia e caracterizada pelo uso prevalecente do digital, traz consigo novas necessidades, tais como eficiência, practicidade, agilidade, economia, mas também requer especial consideração de necessidades como segurança, fiabilidade, certeza jurídica. É no equilíbrio, nem sempre fácil, entre estes requerimentos indispensáveis ao funcionamento da sociedade, que se torna necessária uma re-abordagem do conceito de documento, agora desmaterializado e que, ademais, apenas pode ser percepcionado pelo homem de modo indireto. Assim, iremos considerar este novo tipo de documento (electrónico), inquirindo sobre as possibilidades da sua equiparação ao documento tradicional, da sua admissibilidade como meio de prova e do seu valor enquanto meio de prova face ao direito português e europeu.

2. Noção de documento electrónico e admissibilidade como meio de prova De acordo com a Lei portuguesa, a função das provas é criar uma crença firme na realidade de um determinado facto3. A prova documental vem referida no art. 362.º do Código Civil, que define documento como “qualquer objecto ela2 Por documentos informáticos entenda-se “documentos emitidos por computador que reproduzem dados registados na sua memória, não assinados nem subscritos por um real ou pretenso autor de uma declaração”, cfr. Armindo Ribeiro Mendes, op. cit., pág. 517. No entanto, parece-nos que se a primeira parte da presente definição - documentos emitidos por computador que reproduzem dados registados na sua memória – representa perfeitamente aquilo que é um documento informático, já a parte final da definição nos parece menos evidente, pelo menos se aceitarmos, como muitos autores hoje já aceitam e a própria lei reconhece, que os documentos informáticos podem ser ”assinados” através do recurso às chamadas ”assinaturas digitais”. E menos dúvidas nos suscitará ainda o caso de documentos informáticos assinados através do recurso ao método da assinatura dinâmica. A questão deve, no entanto, considerar-se hoje ultrapassada em Portugal, dada a vigência do Regime Jurídico do Documento Electrónico e da Assinatura Electrónica. Sobre a consideração jurídica de “assinaturas digitais” e de “assinaturas dinâmicas” e sua distinção, cfr. Francisco Andrade, «Consideração Jurídica das Assinaturas Dinâmicas no Ordenamento Jurídico Português» in Memórias do XVI Congresso Ibero Americano de Derecho e Informática, Quito, 2012. 3 Cfr. art. 341.º Código Civil: “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”. Cfr. ainda “TEDIS – The legal position of the member states with respect to Electronic Data Interchange”, Comissão das Comunidades Europeias, Setembro de 1989, pág. 222.

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borado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”. Claro que o Código Civil Português foi aprovado por Decreto-Lei de Novembro de 1966, e quando este artigo foi redigido ninguém podia sequer imaginar a existência de “documentos electrónicos”4. No entanto, este artigo foi redigido de tal modo que, fazendo uma leitura literal do mesmo, até nem se pode questionar que o documento electrónico é um objecto – ainda que desmaterializado – “com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”5. Questão será a de saber se todos os documentos electrónicos são elaborados “pelo homem”. A crescente introdução de sistemas e aplicações de “Inteligência Artificial” e até a consagração, no ordenamento jurídico português, de uma modalidade de “contratação sem intervenção humana” (art. 33.º do DL 7/2004 – Regime Jurídico do Comércio Electrónico) conduzem-nos a ter que considerar a existência de documentos electrónicos gerados exclusivamente por aplicações informáticas. E, no entanto, ainda em 2001, a propósito da questão da “elaboração pelo homem” e da “finalidade representativa” do documento”, Miguel Teixeira de Sousa sustentava que os registos informáticos que comandam o processo de fabrico de um produto por robôs não se podiam incluir na prova documental. Mas a questão tem que ser hoje equacionada de acordo com a legislação portuguesa e europeia vigente. Diga-se a propósito que o diploma português que regula os documentos electrónicos (DL 290-D/99, com as sucessivas alterações, a última das quais do DL 88/2009 de 9 de Abril), veio a sofrer profundo impacto resultante da entrada em vigor do Regulamento EIDAS - Regulamento (UE) 910/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Julho de 2014, relativo

4 Claro que podemos considerar a existência de documentos electrónicos escritos e documentos electrónicos não escritos. Tal como refere Miguel Teixeira de Sousa, «O valor probatório dos documentos electrónicos», in Direito da Sociedade da Informação, vol. II, Coimbra Editora, 2001, págs. 171-201, pág. 198: “Os documentos electrónicos não escritos são aqueles que contêm sons ou imagens. Este conteúdo aproxima-os das reproduções mecânicas referidas no art. 368.º CC, pelo que se lhes pode atribuir o valor probatório que este preceito fixa para essas reproduções: aqueles documentos fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem eles forem apresentados não impugnar a sua exatidão”. 5 Miguel Teixeira de Sousa aponta a função representativa dos documentos e refere que “[a]tendendo à função representativa, parece indiscutível que o documento electrónico cabe na definição de documento fornecida pelo art. 362.º CC, pois os dados que estão gravados no documento electrónico representam ou reproduzem uma certa realidade”, op. cit., pág. 184.

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à identificação electrónica e aos serviços de confiança para as transações electrónicas no mercado interno6. A respeito da consideração legal do documento electrónico, veja-se o modo como os diplomas legais (português e europeu) o encaram. O diploma português, no seu art. 2.º, al. a), considera documento electrónico como aquele que é “elaborado mediante processamento electrónico de dados”. Já o Regulamento EIDAS considera documento electrónico como “[q]ualquer conteúdo armazenado em formato electrónico, nomeadamente texto ou gravação sonora, visual ou audiovisual”. O que nos aponta desde logo para a possibilidade de existência de documentos electrónicos escritos e/ou não escritos. Tal resultava já do art. 3.º, n.º 1, do diploma português: “O documento electrónico satisfaz o requisito de forma escrita quando o seu conteúdo seja susceptível de representação como declaração escrita”. Temos assim uma consagração clara, pelo direito europeu e pelo direito português (e a este respeito sem que exista nenhuma contradição entre os dois diplomas). Questão diversa é a de saber se um documento electrónico pode ou não respeitar a forma escrita. O DL 290-D/99 é a este respeito claro, ao prever no n.º 1 do art. 3.º a existência de documentos electrónicos escritos e, no n.º 3 do mesmo artigo, a existência de documentos “cujo conteúdo não seja susceptível de representação como declaração escrita”7. No entanto, na ordem jurídica portuguesa, há que referir que o DL 7/2004 (conhecido entre nós como Lei do Comércio Electrónico) veio lançar alguma confusão no que à forma escrita respeita, com uma redação confusa (e desastrada) do seu art. 26.º: “As declarações emitidas por via electrónica satisfazem a exigência legal de forma escrita quando contidas em suporte que ofereça as mesmas garantias de fidedignidade, inteligibilidade e conservação”. A redação deste artigo evidencia uma enorme confusão entre legibilidade e segurança, entre escrito e prova. Escrito é o que pode ser lido e, a este respeito faz todo o sentido a distinção entre documentos escritos e não escritos. No entanto, reconhecemos a pertinência das questões relativas à segurança e fiabilidade das transações. É que há uma real necessidade de garantir um elevado grau de segurança das comunicações electrónicas e a efetiva durabilidade dos dados transmitidos. 6

Que revogou a Diretiva 1999/93/CE, transposta em Portugal pelo referido DL 290-D/99 de 2 de Agosto. Sobre o Regulamento EIDAS, cf. Jos Dumortier, «Regulation (EU) No 910/2014 on Electronic Identification and Trust Services for Electronic Transactions in the Internal Market (eIDAS Regulation)» (July 2016) in SSRN: https://ssrn.com/abstract=2855484» or http://dx.doi. org/10.2139/ssrn.2855484 (visitado 30 Abril 2019). Cfr. ainda Francisco Andrade «Identificação Electrónica, Assinatura e Serviço de Confiança», UNIO EU Law Journal 2018.

7 Que neste caso teriam a força probatória prevista no art. 368.º do Código Civil (Reproduções Mecânicas).

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E aceitamos até que por razões de segurança e probatórias poderá e deverá haver lugar a discriminação positiva: justifica-se uma referência no texto legal, à utilização de tipos de suporte nos quais a mensagem electrónica possa ser indelevelmente gravada e arquivada de modo a não poder ser alterada8 - ; é que não é exatamente igual gravar uma mensagem electrónica num suporte que só pode ser gravado uma única vez, ou que eventualmente pode ser regravado inúmeras vezes mas deixando sempre vestígios de cada uma das versões anteriormente gravadas, até com indicação de data e hora de cada gravação - ou num tipo de suporte no qual o conteúdo se torna bastante mais volátil, já que pode ser alterado e regravado praticamente sem que dessa alteração quede qualquer vestígio ou rastro)9. E aqui, apesar do art. 26.º do DL 7/2004, o legislador, levando ao extremo a sua preocupação de neutralidade tecnológica10, não estabeleceu qualquer diferenciação entre os vários tipos de arquivamento electrónico. E, no entanto, é clara a distinção, em termos de fiabilidade e segurança, entre os vários tipos de instrumentos disponíveis11. A distinção de que falamos teria a grande vantagem de poder constituir não só um incentivo à utilização das mais avançadas e seguras técnicas de arquivamento de mensagens, mas, sobretudo, comportaria um enorme avanço em termos de fiabilidade e segurança das transações. Com grandes vantagens em dois planos distintos: o da segurança dos utilizadores e o da certeza do direito. Pelo que esta questão poderia e deveria também ter sido equacionada relativamente ao chamado valor de prova dos documentos electrónicos. Mas o legislador português, no DL 7/2004 equivocou-se, colocando 8 “Os textos contidos em ficheiros de computador ou mensagens de correio electrónico são em regra facilmente alteráveis por qualquer pessoa que a eles tenha acesso, o que põe em causa a sua integridade e, por conseguinte, o seu valor probatório”, cfr. Miguel Pupo Correia, «Assinatura electrónica e certificação digital», in Direito da Sociedade da Informação, vol. VI, Coimbra Editora, 2006, págs. 277 - 317 pág. 278. 9 “...os documentos conservados em memórias comuns de computadores ou com elas relacionadas (bandas magnéticas ou “disquetes”) são facilmente modificáveis por qualquer um que tenha a eles acesso através do respectivo computador, o que põe em risco de imediato a sua integridade. Daí que, para a satisfação deste requisito, os documentos electrónicos hajam de ser preservados contra modificações através da sua inserção em arquivos protegidos: memória ROM (read only memory) do disco rígido do computador, ou disco óptico (CD-ROM), etc.”, Miguel Pupo Correia, op. cit., pág. 289. 10 Mas não feriria a pretendida neutralidade tecnológica da lei o haver uma referência a suportes de gravação única ou de gravação múltipla mas com rastreabilidade (“traceability”) das sucessivas alterações. 11 Havendo que referir, no entanto, que o legislador português falha totalmente o alvo ao considerar apenas os suportes sem equacionar sequer a questão dos formatos, questão essencial para a própria abordagem da noção de cópia relativamente aos documentos electrónicos. Sobre a consideração jurídica dos formatos de ficheiro electrónico cfr. Pedro Dias Venâncio A tutela jurídica dos formatos de ficheiro electrónico, Almedina 2016

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a questão não no plano da segurança e da prova, mas no plano do escrito e da exigência de forma escrita. Claro fica também que o documento electrónico escrito pode ser, ou não, assinado. O conceito de assinatura não está definido na legislação portuguesa. Em termos gerais, a assinatura é uma maneira de identificar alguém e de mostrar a sua concordância com um fato, um objeto ou conteúdo. A assinatura, portanto, aparece como um símbolo que alguém usa com a intenção real de autenticar um documento escrito12. Na doutrina jurídica clássica é um sinal distintivo, próprio do autor da assinatura, pelo qual a pessoa se torna conhecida em relação aos outros. Assim sendo, a admissibilidade de uma assinatura não escrita deve levar em consideração uma análise funcional da assinatura13. Isso significa que uma assinatura deve ser um sinal estritamente pessoal e distintivo que possa certificar, sem margem de dúvida, a vontade da pessoa que assina14. Vincent Gautrais15 a esse respeito diz que uma assinatura contém essencialmente duas funções principais: a identificação do signatário e a manifestação de sua vontade. O legislador europeu manteve o foco num conceito amplo e tecnologicamente neutro16 de assinatura eletrónica17, entendendo-o como um método usado pelo signatário (necessariamente uma pessoa singular) para assinar um documento electrónico (art. 3.º, n.os 9 e 10 do Reg. 910/2014). O que nos permite, no estado atual do conhecimento e da tecnologia, considerar dois métodos considerados como verdadeiros meios de assinatura: as assinaturas digitais, operando através 12 “Uma assinatura tradicional deve ser (1) um símbolo; (2) executado ou adotado; (3) por uma parte; (4) com intenção atual; (5) para autenticar; (6) uma escrita”, John P. Fischer, «Computers as agents: a proposed approach to revised U.C.C. article 2», Indiana Law Journal, vol. 72 Number 2 (Spring 1997): 567. 13 “Важно обеспечить так называемый”функционально-эквивалентный” подход к бумажной и безбумажной документации”, А П Вершинин, “Электронный документ: правовая форма и доказательство в суде” Городец, Москва, 2000, стр. 31 – [“É importante garantir a chamada equivalência funcional à documentação em e sem papel”, A. P. Vershinin, Electronic Document: legal validity and proof value in Court (Gorodiets, Moscovo, 2000), pág. 31]. 14 Alain Bensoussan, Les Telecommunications et le droit (Paris : Memento-Guide Alain Bensoussan, Hermés, 1992), pág. 183. 15 Vincent Gautrais, «La formation des contrats en ligne», dans Daniel Poulin et al. (dir.), Guide juridique du commerçant électronique, Montréal, Thémis, 2003, p. 143-164. 16 A neutralidade tecnológica é expressamente assumida no Considerando 27 do Regulamento: “O presente regulamento deverá ser tecnologicamente neutro. Os efeitos legais que o presente regulamento produz deverão poder ser obtidos por qualquer meio técnico, desde que os requisitos do regulamento sejam cumpridos”. 17 Se o conceito amplo de assinatura eletrónica se refere a qualquer método usado para identificar o signatário, o conceito de assinatura digital é muito mais restrito: ele se refere ao uso de técnicas criptográficas para a transmissão de dados e para a identificação do autor da mensagem e para a verificação de sua integridade.

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de um complexo sistema de emissão de chaves criptográficas e procedimentos de certificação, usualmente denominado “Infraestrutura de Chaves Públicas” (garantindo a identificação através de algo que apenas a pessoa conhece ou possui) (Código de Acesso, Chave Secreta ou Cartão Inteligente – “smart card”), e uma nova tecnologia construída sobre o uso de tecnologias biométricas (capazes de converter características físicas de seres vivos em dados digitais)18 com base em características da pessoais ou relativo a algo que somente a pessoa é capaz de fazer19. Estamo-nos referindo às Assinaturas Dinâmicas baseadas na conversão digital do comportamento biométrico da assinatura escrita. Independentemente de ser ou não assinado, o documento electrónico tem (ou pode ter) uma clara função representativa, no que encontra correspondência com um dos requisitos do art. 362.º do Código Civil (“...fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”). No entanto, há que assumir a evidente característica (ou limitação decorrente) da sua perceptibilidade indireta: o documento electrónico é constituído por bits, “0”s e “1”s, não sendo possível a sua percepção sem a intermediação de um instrumento tecnológico. No entanto, apesar deste constrangimento, a sua admissibilidade como meio de prova está hoje inequivocamente resolvida em todo o espaço da União Europeia, por força da entrada em vigor (e consequente aplicação direta) do Regulamento 910/2014, que no seu art. 46.º sob a epígrafe “Efeitos legais dos documentos electrónicos” expressamente contempla esta questão: “Não podem ser negados efeitos legais nem admissibilidade como prova em processo judicial a um documento electrónico pelo simples facto de apresentar em formato electrónico”.

3. Valor de prova do documento electrónico A prova documental é expressamente contemplada no nosso ordenamento jurídico, desde logo no Código Civil. No entanto, a expressa previsão de utilização de documentos electrónicos como meio de prova surge entre nós com a introdução do regime jurídico do

18 “…technologies for converting physical characteristics of living things into digital data streams”, Sean O’Connor, «Collected, tagged, and archived: legal issues in the burgeoning use of biometrics for personal identification», Stanford Technology Law Review http://www.jus.unitn.it/users/ pascuzzi/privcomp00-01/topics/6/firma/connor.txt (visitado em 30 de Abril de 2019) 19 A maioria das tecnologias biométricas (reconhecimento de impressões digitais, reconhecimento da íris e assim por diante) não alcança, apesar de sua confiabilidade muito alta, a garantia das funções associadas ao conceito de assinatura, Miguel Pupo Correia, na obra citada, afirma que as tecnologias biométricas “não asseguram por si mesmas a função de manifestação da vontade do autor, que só pode ser alcançada por outro processo associado à referida tecnologia”.

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O Documento electrónico revisitado face ao Regulamento (UE) 910/2014 (Regulamento EIDAS) Francisco Andrade

documento electrónico e assinatura electrónica (RJDEAE), através do DL 290D/99 de 2 de Agosto, que foi sendo sucessivamente alterado20. A alteração mais relevante, no que concerne às assinaturas electrónicas e ao documento electrónico (e seu valor de prova) foi a decorrente do DL 62/2003 de 3 de Abril, que veio estabelecer não só uma distinção entre assinaturas electrónicas avançadas e assinaturas electrónicas qualificadas (art. 2.º, al. c)), e assinatura electrónica qualificada (art. 2.º, al. g)), mas também veio distinguir (no que ao valor probatório respeita) entre as próprias assinatura electrónicas qualificadas: “Quando lhe seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificadora por uma entidade certificadora credenciada, o documento electrónico” (cujo conteúdo fosse suscetível de representação como declaração escrita – art. 3.º, n.º 1) teria “a força probatória de documento particular assinado, nos termos do art. 376.º do Código Civil”. Mas em 2014 foi aprovado o (des)conhecido Regulamento EIDAS21. Este Regulamento não estabelece regras quanto ao valor de prova do documento electrónico, considerando que essa é matéria da competência de cada Estado membro. No entanto, veio introduzir uma regra obrigatória respeitante às assinaturas electrónicas que traz consigo repercussões evidentes em matéria probatória. Logo no Considerando 49 se estabelece o princípio “segundo o qual não podem ser negados efeitos legais à assinatura electrónica pelo facto de se apresentar sob forma electrónica ou de não cumprir os requisitos da assinatura electrónica qualificada”, mas também se estabelece uma excepção ao princípio da competência do direito nacional em matéria probatória, pela consagração da obrigatoriedade do requisito nos termos do qual “a assinatura electrónica qualificada deverá ter um efeito legal equivalente ao de uma assinatura manuscrita”. Deste considerando decorre a expressa previsão normativa, no n.º 2 do art. 25.º do Regulamento, de que “[a] assinatura electrónica qualificada tem um efeito legal equivalente ao de uma assinatura manuscrita”. Foi assim ultrapassada a distinção que existia no direito português entre duas modalidades diferentes de assinaturas electrónicas qualificadas, já que o Regulamento EIDAS consagrou o princípio (e regra obrigatória) da total equipa-

20 Pelas alterações decorrentes do DL nº 62/2003 de 3 de Abril (que definitivamente consagrou o princípio da neutralidade tecnológica, ao colocar o enfoque na assinatura electrónica e não mais na assinatura digital, entendida agora como apenas uma modalidade de assinatura electrónica), do DL nº 165/2004 de 6 de Julho, do DL nº 116-A/2006, de 16 de Junho e, finalmente, do DL nº 88/2009, de 9 de Abril. 21 Regulamento 910/2014 de 23 de Julho, relativo à identificação electrónica e aos serviços de confiança para as transações electrónicas no mercado interno e que revoga a Diretiva 1999/93/CE

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ração entre assinatura electrónica qualificada (todas as assinaturas electrónicas qualificadas) e assinatura manuscrita. Pelo que se haverá de entender que, face ao disposto no n.º 2 do art. 25.º do Regulamento EIDAS, e atenta a aplicação imediata e direta deste Regulamento em todo o espaço da União Europeia, o n.º 2 do art. 3.º do DL 290-D/99 se encontra revogado. Assim como estará revogado, no que às assinaturas electrónicas qualificadas respeita, o n.º 5 do mesmo artigo, quando refere que “o valor probatório dos documentos electrónicos aos quais não seja aposta uma assinatura electrónica qualificada certificada por entidade certificadora credenciada é apreciado nos termos gerais de direito”. Mantêm-se no entanto em vigor, porque a matéria não foi sequer abordada pelo Regulamento Europeu, as presunções estabelecidas pelo art. 7.º do DL 290-D/99 a respeito da aposição de assinatura electrónica qualificada a um documento electrónico, ou seja: - presunção de autoria: presunção de que o signatário é o titular da assinatura22; - presunção de vontade: a aposição da assinatura electrónica qualificada faz presumir que o signatário deu assentimento quanto às declarações emitidas por essa via; - presunção de integridade: presunção de que o documento ao qual foi aposta assinatura electrónica qualificada não sofreu alteração, desde o momento da aposição da assinatura (por força da aplicação do algoritmo “hash”). Estas presunções têm de ser consideradas como presunções ilidíveis, mas deve reconhecer-se que só muito dificilmente o serão na prática.

22 O Regulamento EIDAS também veio esclarecer uma questão que era suscitada pelo art. 28.º, n.º 1, do DL 290-D/99 relativamente à emissão, pela entidade certificadora, dos dados de criação de criação e verificação de assinatura e do respectivo certificado “a pedido de uma pessoa singular ou coletiva interessada e a favor desta”. De tal disposição parecia decorrer a possibilidade de assinatura digital de pessoa colectiva. A questão está agora ultrapassada pelo teor do nº 9 do art. 3.º do Regulamento EIDAS, que clara e expressamente estabelece que “signatário” é “a pessoa singular que cria uma assinatura electrónica”, assim se eliminando a possibilidade de uma assinatura digital de pessoa coletiva. Em compensação, o Regulamento prevê a existência de “selo electrónico” (art. 3.º, n.º 25: “os dados em formato electrónico apenso ou logicamente associado a outros dados em formato electrónico para garantir a origem e a integridade destes últimos”) e de “certificado de selo electrónico” (art. 3.º, n.º 29: “um atestado electrónico que associa os dados de validação do selo electrónico a uma pessoa coletiva e confirma o seu nome”. Por esta razão, devem também considerar-se revogados o n.º 2 do DL 290-D/99 na parte relativa às pessoas coletivas (“2- A assinatura electrónica qualificada deve referir-se inequivocamente a uma só pessoa singular ou colectiva e ao documento ao qual é aposta”) e ainda o n.º 3 do mesmo artigo, este revogado na íntegra: “A aposição de assinatura electrónica qualificada substitui, para todos os efeitos legais, a aposição de selos, carimbos, marcas ou outros sinais identificadores do seu titular”.

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4. Conclusões O documento electrónico, espécie do documento reconhecido pelo Código Civil, no seu art. 362.º, mas dele se diferenciando pelo facto de se tratar de um documento desmaterializado e insuscetível de uma percepção direta pelos sentidos, foi expressamente reconhecido no direito português com a aprovação do Regime Jurídico do Documento Electrónico e da Assinatura Electrónica (DL 290-D/99, de 2 de Agosto). Este documento desmaterializado mantém contudo a tradicional função representativa dos documentos (finalidade de “reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto” – art. 362.º do Código Civil). Entretanto, não ficam dúvidas nem dificuldades relativamente à consideração da possibilidade de existência de documentos electrónicos escritos e de documentos electrónicos não escritos. A este respeito, verifica-se conformidade entre o diploma português (art. 3.º, nos 1 e 3 do DL 290-D/99) e o Regulamento Europeu (art. 3.º, n.º 35: “qualquer conteúdo armazenado em formato electrónico, nomeadamente texto ou gravação sonora, visual ou audiovisual”). Por outro lado, é evidente que o documento electrónico pode ser assinado ou não, aceitando-se uma visão tecnologicamente neutra do conceito de assinatura, assente numa perspectiva de equivalência funcional entre a assinatura manuscrita e a assinatura electrónica. No entanto, tal perspectiva de neutralidade tecnológica não nos dispensa de constatar que, atualmente, de acordo com o atual estado da técnica, assinaturas electrónicas serão apenas as chamadas “assinaturas digitais” e as assinaturas dinâmicas, resultantes da aplicação de tecnologias de biometria comportamental. Quanto à admissibilidade do documento electrónico como meio de prova, ela está hoje inquestionavelmente estabelecida pelo Regulamento EIDAS, estando ainda estabelecida a regra (inderrogável pelo direito nacional) de que a assinatura electrónica tem (sempre) um valor probatório equivalente o de assinatura manuscrita. Pelo que o art. 3.º, nº 2, do DL 290-D/99 (bem como o n.º 5 do mesmo artigo no que se refere às assinaturas electrónicas qualificadas) se deve considerar como revogado por força da entrada em vigor do Regulamento EIDAS. Mantêm-se no entanto em vigor, as presunções (de autoria, vontade e integridade) previstas no artigo 7.º, n.º 1, do DL 290-D/99.

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O DESÍGNIO DA JUSTIÇA ELETRÓNICA EUROPEIA DE 2019 A 2023 À LUZ DO CONTENCIOSO DA UNIÃO – REFLEXÕES ANTECIPATÓRIAS Joana Covelo de Abreu Professora Convidada da Escola de Direito da Universidade do Minho Investigadora do Jus-Gov – Centro de Investigação em Justiça e Governação

Resumo: Perante no novo quadro relativo à Justiça Eletrónica europeia de 2019 a 2023, conduziu-se uma análise aprofundada decorrente dos atos preparatórios do Conselho – a sua Estratégia e o seu Plano de Ação. Nesta senda, os seus objetivos primordiais passam por um melhor acesso à justiça e a informações por parte dos particulares, autoridades judiciais e demais profissionais da justiça e por uma aposta nos sistemas de justiça interoperáveis. Atentos tais desenvolvimentos presentes e futuros, criou-se o pano de fundo tendente à consideração teórica de um conceito amplo de Contencioso da União Europeia: se funcionalmente já bem sedimentado numa arquitetura jurisdicional, para a União Europeia, assente quer no Tribunal de Justiça da União Europeia, quer nos tribunais nacionais, enquanto respetivamente tribunais orgânica e funcionalmente europeus, também passou a fazer sentido que o conceito material abarcasse o estudo de outras realidades, nomeadamente impactadas pelo paradigma da Justiça Eletrónica europeia. Tal reflexão mostrou-se capaz de demonstrar que estes desenvolvimentos têm, como fundamento e teleologia, uma efetiva tutela jurisdicional, que sai perfeitamente elevada pelos novos desafios em matéria de Justiça eletrónica.

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O desígnio da Justiça Eletrónica Europeia de 2019 a 2023 à luz do Contencioso da União – reflexões antecipatórias Joana Covelo de Abreu

Palavras-chave: Justiça eletrónica 2019-2023; interoperabilidade; contencioso da União Europeia; tutela jurisdicional efetiva.

1. A justiça eletrónica europeia no âmbito do Mercado Único Digital – estado da arte No início dos esforços de uma adequação às novas tecnologias de informação e de comunicação, a União Europeia, através da Comissão, apostou no estabelecimento e fortalecimento de um Mercado Único Digital. Tal surge como um interesse público primário que foi abraçado quer pelos agentes políticos europeus como pelos nacionais1. A União, de forma a justificar as suas incursões neste contexto e a possibilidade de consolidação legislativa europeia, sedimentou o seu desenvolvimento à luz das suas competências partilhadas, associadas ao bom funcionamento do Mercado Interno. Na realidade, a União pode gozar de competências partilhadas com os Estados-Membros, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 2, a) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), no domínio do Mercado Interno, o que significa que “[q]uando os Tratados atribuam à União competência partilhada com os Estados-Membros em determinado domínio, a União e os Estados-Membros podem legislar e adotar atos juridicamente vinculativos nesse domínio”, pelo que “[o]s Estados-Membros exercem a sua competência na medida em que a União não tenha exercido a sua” e “voltam a exercer a sua competência na medida em que a União tenha decidido deixar de exercer a sua” (artigo 2.º, n.º 2 do TFUE). Neste pressuposto, a União Europeia confiou, por longos anos, nas diligências de atualização tecnológica, realizadas pelos Estados-Membros, mas acabou por concluir que havia a necessidade de chamar a si o seu exercício a fim de promover uma tendencial harmonização das soluções digitais adotadas sob pena de as mesmas não serem comunicáveis entre si. Afinal, como adiantava a Comissão, em 2015, “[a] economia mundial está rapidamente a tornar-se digital” e “[a] internet e as tecnologias digitais estão a transformar a nossa vida, a nossa forma de trabalhar – como indivíduos, nas empresas e nas nossas comunidades – à medida que se integram mais profundamente em todos os setores da nossa economia e da nossa sociedade”, pelo que “[e]stas alterações estão a ocorrer a uma escala e a um ritmo tais que […] colocam também questões políticas que constituem grandes desafios para as autoridades públicas e que

1 Para maiores desenvolvimentos, cfr. Joana Covelo De Abreu, «Digital Single Market under EU political and constitutional calling: European electronic agenda’s impact on interoperability solutions», UNIO – EU Law Journal, Vol. 3, No. 1, pp. 123-140, http://www.unio.cedu.direito. uminho.pt/Uploads/UNIO%203/UNIO%203%20EN/Joana%20Covelo%20de%20Abreu%20 (1).pdf [acesso: 29.3.2019].

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exigem uma ação coordenada da UE”2. A Comissão Europeia chamou a atenção para o facto de “[o]s Estados-Membros [se debaterem] com problemas semelhantes, mas numa escala nacional que é demasiado limitada para permitir tirar partido de todas as oportunidades e enfrentar todos os desafios desta mudança transformacional”, concluindo que era ao “[…] nível europeu [que se constituía] o enquadramento adequado”3. Neste diapasão, a Comissão Europeia já adiantava que, no vetor relativo a uma “sociedade da informação mais inclusiva”, se perspetivava a necessidade de apostar em “[…] serviços eletrónicos interligados e multilingues, desde a administração pública em linha, a justiça eletrónica […]”4, etc. Assim, a Justiça Eletrónica Europeia (European e-Justice) surgiu como uma prioridade política associada ao paradigma da Administração Pública em linha (e-Government) através da adoção do Plano de Ação para a Administração Pública em linha de 2016 a 2020. Neste adiantou-se que a Comissão se iria vocacionar a envidar esforços significativos de modernização digital com impacto significativo na justiça, alinhando-se com as demandas decorrentes do Plano Plurianual de Justiça Eletrónica em vigor, nomeadamente apostando num reforço das valências do Portal Europeu de Justiça como balcão único de informações sobre justiça europeia e, desde então, referindo-se ao e-Codex a propósito do “lançamento de instrumentos de comunicação direta entre os cidadãos e os tribunais noutros Estados-Membros”5. Daqui parecia resultar que, “[p]ara os políticos, a justiça eletrónica se relaciona[va] primacialmente com a criação de sistemas de informação para a organização de grandes quantidades de informação e de questões legais”, os quais poderão ser vistos como uma “vantagem competitiva no âmbito da economia global”6. Ora, esta associação entre os paradigmas da Administração Pública em linha e da Justiça Eletrónica europeia – que já resultavam ínsitos desde o início 2 Cfr. Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, aos Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa, Bruxelas, 6 de maio de 2015, SWD(2015) 100 final, p. 3, https:// eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52015DC0192&from=EN, [acesso: 29.3.2019]. 3 Cfr. Comissão Europeia, Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa..., p. 3. 4 Cfr. Comissão Europeia, Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa..., p. 17. 5 Cfr. Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Plano de Ação Europeu (20162020) para a Administração Pública em Linha: “Acelerar a transformação digital da Administração Pública”, Bruxelas, 19 de abril de 2016, COM(2016) 179 final, p. 9, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016DC0179&from=PT [acesso: 29.3.2019]. 6 Cfr. Miklós Kengyel, Zoltán Nemessányi (Eds.), Electronic Technology and Civil Procedure. New paths to justice from around the world, Springer, 2012, p. ix (tradução livre).

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dos esforços tendentes ao desenvolvimento de um Mercado Único Digital, através da potencialização do método da interoperabilidade (primeiramente pensado ao serviço da modernização dos serviços administrativos) para os domínios da justiça eletrónica7 – resulta, atualmente, evidente e expressamente consagrada na Estratégia desenhada pelo Conselho para 2019-2023. Na realidade, sob a epígrafe “Articulação entre os princípios da justiça eletrónica e da administração em linha”, o Conselho adianta que “[o]s trabalhos realizados no domínio da justiça eletrónica podem beneficiar outros domínios”8 na medida em que “[a]o permitir um acesso mais fácil à informação e à justiça, a justiça eletrónica deverá contribuir para o desenvolvimento do mercado único digital, que é um dos objetivos da administração pública em linha”, o que conduz à ideia de que “[a]s iniciativas europeias em matéria de justiça eletrónica deverão procurar aprofundar a coerência no âmbito do quadro da administração pública em linha, tendo em conta as disposições constitucionais relativas ao poder judicial nos Estados-Membros (independência judicial e separação de poderes)”9. A Justiça Eletrónica europeia hoje assume um duplo papel paradigmático: como meio de implementação de sistemas interoperáveis de comunicação, enquanto paradigma que facilita a articulação jurisdicional institucional, e como desígnio ao serviço de uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos, pela ordem jurídica europeia, aos particulares, alavancando uma conceção ampla de Contencioso da União. Cabe-nos, portanto, aferir como o caminho visado 7 Cfr., para maiores desenvolvimentos e sensibilidades, Joana Covelo De Abreu, «A Justiça Eletrónica Europeia como paradigma de revisão do Regulamento n.º 1393/2007, relativo às citações / notificações de atos judiciais e extrajudiciais – sensibilidades preliminares à luz de uma integração judiciária», in Clara Calheiros, Mário Ferreira Monte, Maria Assunção Pereira, Anabela Gonçalves (Coords.), Direito na Lusofonia “Direito e novas tecnologias” – 5.º Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2018, pp. 191-202; Joana Covelo De Abreu, «Judicial interoperability in the e-Justice paradigma: perceiving e-CODEX as the proper answer? A synchronic melody for a judicial integration», PoLaR – Portuguese Law Journal, Volume 2, January 2018, n.º 1, pp. 31-48, in http://www. portugueselawreview.pt/wp-content/uploads/2018/05/PoLaR-Vol.-2-No.-1-January-2018-1.pdf [acesso: 30.3.2019]; Joana Covelo De Abreu, «A justiça eletrónica europeia e a modernização do espaço de liberdade, segurança e justiça: a videoconferência no Regulamento n.º 1206/2001 ao serviço de uma integração judiciária», in Maria Miguel Carvalho, Ana Flávia Messa, Irene Patrícia Nohara (Coords.), Democracia Económica e Responsabilidade Social nas Sociedades Tecnológicas, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2019, pp. 93-116, in https://issuu. com/comunicadireito/docs/democracia_economica_edum_web [acesso: 30.3.2019]; Alessandra Silveira, Joana Covelo De Abreu, «Interoperability solutions under Digital Single Market: European e-Justice rethought under e-Government paradigm», European Journal of Law and Technology, Vol. 9, Issue 1, 2018, http://ejlt.org/article/view/590/827 [acesso: 30.3.2019]. 8 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023, 13 de março de 2019, 2019/C 96/04, parágrafo 8, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52019XG0313(01)&from=EN [acesso: 30.3.2019]. 9 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 9.

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para a Justiça Eletrónica europeia se irá calcorrear e antecipar qual o impacto que a mesma pode ter numa mais ampla tutela jurisdicional e nos desenvolvimentos doutrinais em sede de fixação de um conceito renovado de Contencioso da União Europeia.

2. A Justiça Eletrónica europeia de 2019 a 2023 – a Estratégia e o Plano de Ação do Conselho A Justiça Eletrónica Europeia foi endereçada, pela União Europeia, de forma coordenada e pela primeira vez em 2007, quando o Conselho decidiu estabelecer um Grupo de Trabalho sobre o tema10. Na sequência já três Planos Plurianuais de Ação foram adotados, no seio do Conselho: de 2009 a 2013; de 2014 a 2018; e o recente de 2019 a 2023. No entanto, tal desígnio também foi sendo perseguido pelas demais instituições europeias: em 2008, a Comissão adotou a comunicação subordinada ao tema “Rumo a uma estratégia europeia em matéria de e-Justice”11; e, no mesmo ano, o Parlamento Europeu adotou uma resolução em matéria de e-Justice, aprovada em sessão plenária12. Já nos dias que correm, “[a] justiça eletrónica europeia tem por objetivo melhorar o acesso à justiça num contexto pan-europeu e está a desenvolver e integrar tecnologias da informação e comunicação para o acesso à informação jurídica e ao funcionamento dos sistemas judiciais”13. Afinal, o Conselho entendeu que a tramitação processual de forma digitalizada e a “comunicação eletrónica entre as pessoas envolvidas em processos judiciais passaram a ser uma componente essencial do funcionamento eficaz do sistema judiciário nos Estados-Membros”14. Fazendo o balanço dos resultados obtidos nos anteriores períodos, o Conselho dá-nos conta de que o Portal Europeu de Justiça foi melhorado, através da inclusão de i) mais informações, como as páginas relativas ao direito da família, à formação de profissionais da justiça em direito da União Europeia, 10 Cfr. Eva Storskrubb, «E-Justice, innovation and the EU», in Burkard Hess, Xandra E. Kramer (Eds.), From common rules to best practices in European Civil Procedure, Hart Publishing, Nomos, Max Planck Institute of Luxembourg for Procedural Law, 2017, pp. 271 e seguintes, p. 276. 11 Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comité Económico e Social Europeu – Rumo a uma estratégia europeia em matéria de e-Justice, Bruxelas, 30 de maio de 2008, COM(2008) 329 final, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ TXT/PDF/?uri=CELEX:52008DC0329&from=EN [acesso: 30.3.2019]. 12 Parlamento Europeu, Resolução que contém recomendações à Comissão em matéria de e-Justice, de 18 de dezembro de 2008, 2008/2125 (INI), https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:ddc320c5-c11c-4b25-b627-ffcebb31a09f.0018.01/DOC_1&format=PDF [acesso: 30.3.2019]. 13 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 1. 14 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 1.

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aos direitos das vítimas em processo penal e à inclusão de legislação em matéria de defesa dos consumidores15; ii) de ferramentas de pesquisa; e iii) de formulários interativos, como os relativos às ações de pequeno montante16. O Portal foi ainda objeto de alterações significativas a fim de “[…] melhorar e facilitar a experiência do utilizador”17. Acresce que, durante o período anterior, se promoveu o desenvolvimento de ferramentas eletrónicas que “[…] já possibilitam processos judiciais digitais através de canais eletrónicos seguros, a comunicação segura entre autoridades judiciais, o acesso mais fácil dos cidadãos às informações sobre disposições legais e o acesso a determinados registos nacionais, sob a responsabilidade dos Estados-Membros ou de organizações profissionais”18. Vivificou-se, ainda, uma aposta no desenvolvimento de novas ferramentas de busca e a inclusão de novos documentos no sítio da internet EUR-Lex, permitindo o acesso a novos atos jurídicos e jurisprudência. Aqui cabe destacar a inclusão de uma ferramenta que permite a pesquisa e o acesso às medidas nacionais de transposição de Diretivas e à jurisprudência nacional, o que sai potenciado pelo facto de a estrutura do próprio site também ter sido objeto de melhoramento. Institucionalmente, quer o Conselho19, quer a Comissão20 apostaram na elaboração de relatórios de progresso à luz do anterior Plano de Ação. A Comissão, no seu Relatório de Progresso, ainda aborda a forma como o novo Plano de Ação deveria ser desenhado e qual o caminho a seguir. Para o efeito, dá conta que os agentes interessados “[…] identificaram cinco domínios que, de acordo com a sua opinião, deveriam ser focados no próximo Plano de Ação”21. Destacaram, portanto, a relevância (1) da inteligência artificial; (2) do e-CODEX; (3) da interligação de todos os registos legais; (4) da interconexão de todos os registos prediais; e (5) do desenvolvimento contínuo do Portal Europeu 15 Cfr., a propósito, www.e-justice.europa.eu. No mesmo sentido, Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 4 e nota de rodapé n.º 6. 16 Cfr., a propósito, Comissão Europeia, Ações de pequeno montante – formulários, in https://e-justice.europa.eu/content_small_claims_forms-177-pt.do?clang=pt [acesso: 30.3.2019]. 17 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 4. 18 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 5. 19 Cfr. Conselho, Relatório de progresso sobre o Plano de Ação de Justiça Eletrónica 2014-2018, de 10 de outubro de 2019, WK 598/2018 REV 2. 20 Cfr. Comissão Europeia, Evaluation study on the outcome of the e-Justice Action Plan 2014-2018 and the way forward – Final Report, DT4EU, https://publications.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/d72311d9-c070-11e8-9893-01aa75ed71a1/language-pt/format-PDF [acesso: 30.3.2019]. 21 Cfr. Comissão Europeia, Evaluation study on the outcome of the e-Justice Action Plan 20142018..., p. 92.

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de Justiça22. Assim, a Comissão deu conta que, entre outras medidas, se deveria imprimir maior celeridade processual ao procedimento europeu de injunção de pagamento e que se deveria criar um sistema digital de pedidos de registos de propriedade que permitisse também o monitoramento do pedido em tempo real23. Como recomendações prospetivas, a Comissão, a partir das sensibilidades colhidas junto dos stakeholders, entendeu que se deveriam alavancar as seguintes realidades: - 1) “Focar e priorizar os projetos baseados em boas práticas”; - 2) “Alargar e diversificar a audição de agentes interessados”, a fim de ouvir diferentes e mais latos stakeholders para que as ações adotadas ao abrigo do novo plano possam ser conhecidas e potencializadas num contexto mais alargado; - 3) “Conduzir um monitoramento e comunicação mais próximos”; - 4) “Consciencializar através de campanhas direcionadas e de uma estratégia de comunicação personalizada”; e - 5) Conduzir “[a]valiações independentes” que visem a verificação da implementação dos projetos com o objetivo de identificar, desde cedo, os problemas e / ou dificuldades decorrentes da sua execução.24 Na sua estratégia, o Conselho esclareceu, desde logo, que a principiologia associada às novas dimensões digitais, inicialmente agregada ao paradigma da Administração Pública em linha, também era aproveitável e deveria ser observada no âmbito da Justiça Eletrónica. Afinal, recordou que, associados aos princípios gerais que se perspetivam aplicáveis à justiça – como a tutela jurisdicional efetiva e a autonomia processual dos Estados-Membros (artigo 19.º, n.º 1, 2.º parágrafo do Tratado da União Europeia – TUE) – outros, com lastro digital, foram permeando a forma como a justiça deve funcionar e ser constitucionalmente apreendida. Assim, identificou que a Justiça Eletrónica europeia deverá

22 Cfr. Comissão Europeia, Evaluation study on the outcome of the e-Justice Action Plan 20142018..., p. 92. 23 Cfr. Comissão Europeia, Evaluation study on the outcome of the e-Justice Action Plan 20142018..., p. 92. 24 Cfr. Comissão Europeia, Evaluation study on the outcome of the e-Justice Action Plan 20142018..., p. 95 (tradução livre).

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observar os princípios do “digital por definição” ou do digital por defeito, da “declaração única” ou da uma única vez25 e da interoperabilidade por defeito. O princípio do digital por definição ou por defeito (digital by default) demanda que, no caso, os tribunais “sejam capazes de facultar os seus serviços por via digital como opção prioritária e através de um balcão único intuitivo”26. No mesmo sentido se dirige a Estratégia do Conselho, ao adiantar que “[…] a justiça eletrónica europeia deverá: [a]poiar uma abordagem que siga o princípio do «digital por definição», nomeadamente, comprometendo-se a assegurar aos cidadãos e às empresas a possibilidade de interagir com as autoridades através de uma plataforma digital, e integrando, na legislação nacional e da UE, uma abordagem que siga o princípio do «digital por definição», a fim de garantir disposições jurídicas pertinentes e, assim, assegurar a segurança jurídica e interações sem falhas num contexto nacional e transfronteiras”27. Por sua vez, o princípio da uma única vez pressupõe que as informações e dados tenham de ser prestados apenas uma única vez, “[…] procedendo-se ao reaproveitamento de dados, em total observância da proteção de dados pessoais, evitando assim que sejam os particulares a terem de iniciar novos [processos] para fornecer as mesmas informações ou os mesmos documentos”28. Para o 25 Cfr., para aperceção do nosso entendimento com diferente nomenclatura, Joana Covelo De Abreu, «O Mercado Único Digital e o seu desígnio político-constitucional, o impacto da Agenda Eletrónica Europeia nas soluções de interoperabilidade», UNIO – EU Law Journal, Vol. 3, n.º 1, janeiro de 2017, pp. 130-150, in http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt/Uploads/UNIO%203/ UNIO%203%20PT/Novo%20Joana%20Abreu.pdf [acesso: 30.3.2019]; Joana Covelo De Abreu, «O Mercado Único Digital e a interoperabilidade administrativa: a proteção de dados pessoais na articulação entre administrações públicas nacionais e as instituições e órgãos da União Europeia – reflexões prospetivas», in Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Eurico Bittencourt Neto, Fabrício Motta (Coords.), O direito administrativo nos 30 anos da Constituição Brasileira de 1988 – um diálogo luso-brasileiros, ICJP/CIDP (Instituto de Ciências Jurídico-Políticas / Centro de Investigação de Direito Público), março de 2019, pp. 206-242, in http://icjp.pt/ sites/default/files/publicacoes/files/ebook_da30anoscb_icjp15mar2019.pdf [acesso: 30.3.2019]. Na realidade, a autora prefere uma expressão mais consentânea com o seu congénere inglês e mais próxima da verdadeira substância de tal princípio que pressupõe a reutilização de dados e de informações previamente prestados perante entidades diferentes, inclusivamente, perante diferentes Estados-Membros. Ora, a nomenclatura “princípio da declaração única”, apesar de figurar nestes documentos oficiais, parece apenas identificar uma das dimensões que resulta deste princípio, na medida em que o mesmo foi pensado para a utilização de dados previamente facultados e não apenas para os casos em que o particular tenha de prestar declarações, seja em contexto administrativo ou jurisdicional. Assim, optamos por nos mantermos fiéis à nomenclatura mais próxima do inglês de princípio da uma única vez (once only principle). 26 Cfr. Joana Covelo De Abreu, «O Mercado Único Digital e a interoperabilidade administrativa: a proteção de dados pessoais...», p. 217. 27 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 11, § 1. 28 Cfr. Joana Covelo De Abreu, «O Mercado Único Digital e a interoperabilidade administrativa: a proteção de dados pessoais...», p. 217.

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Conselho, o princípio da uma única vez (ou da “declaração única”), na Justiça Eletrónica, evita “procedimentos redundantes e, de acordo com as regras de proteção de dados, [reutiliza] em procedimentos posteriores as informações já introduzidas no sistema, se não forem obsoletas”29. Para o efeito, também o princípio da interoperabilidade por defeito foi consagrado ao lado dos demais. Assim, este significa que “os serviços […] devem ser desenvolvidos para trabalhar perfeitamente no Mercado Interno, através de pontes de comunicação organizacional, baseando-se na livre circulação de dados e de serviços digitais na União Europeia”30 – novamente reconhecido e reafirmado na Declaração Ministerial sobre Administração Pública em linha, assinada em Talin, em outubro de 201731. Afinal, tal como veiculado no Programa ISA2, interoperabilidade significa “a capacidade de organizações díspares e diversas interagirem com vista à consecução de objetivos comuns com benefícios mútuos, definidos de comum acordo, implicando a partilha de informações e conhecimentos entre si, no âmbito dos processos administrativos a que dão apoio, mediante o intercâmbio de dados entre os respetivos sistemas de TIC” (artigo 2.º, n.º 1)32. Portanto, a interoperabilidade “[…] busca […] que os Estados-Membros criem e reconvertam as suas plataformas digitais, a fim de promover a sua interconexão e a sua ligação a uma unidade tecnológica central que permitirá que as autoridades nacionais e europeias possam usufruir de redes comuns em diferentes campos de atuação, criando-se um ambiente protegido, nomeadamente em sede de dados pessoais que facilita o acesso transfronteiriço a documentos e informações relevantes”33. Ora, quando o Conselho demanda que a Justiça Eletrónica tem de se encontrar centrada no utilizador, o que significa o uso de “[…] aplicações, sítios Web, ferramentas e sistemas concebidos com vista à facilidade de utilização e à capacitação dos seus utilizadores”, sobretudo na sequência da identificação dos demais princípios associados a tais dimensões digitais, está, 29 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 11, § 2. 30 Cfr. Comissão Europeia, Communication to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee of the Regions – EU eGovernment Action Plan 2016-202 – Accelerating the digital transformation of government, Bruxelas, 19 de abril de 2016, COM(2016) 179 final, p. 3 (tradução livre). 31 Cfr., para maiores desenvolvimentos, Tallinn Declaration on eGovernment at the ministerial meeting during Estonian Presideny of the Council of the EU on 6 October 2017, in https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/news/ministerial-declaration-egovernment-tallinn-declaration [acesso: 30.3.2019]. 32 Decisão (UE) n.º 2015/2240, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que cria um programa sobre soluções de interoperabilidade e quadros comuns para as administrações públicas, as empresas e os cidadãos europeus (Programa ISA2) como meio para modernizar o setor público. 33 Cfr. Joana Covelo De Abreu, «O Mercado Único Digital e a interoperabilidade administrativa: a proteção de dados pessoais...», p. 216.

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necessariamente, a reconhecer o princípio da interoperabilidade por defeito. Aliás, a interoperabilidade surge, no contexto desta Estratégia, como objetivo a atingir, na medida em que esta instituição estabelece que “[c]ada Estado-Membro deverá assegurar a implementação técnica e a gestão dos sistemas nacionais de justiça eletrónica necessários a facilitar a interligação e a interoperabilidade entre os sistemas dos Estados-Membros” através da sua compatibilidade técnica, organizacional, jurídica e semântica para “[…] as aplicações do sistema judicial, sem deixar de ser garantida a flexibilidade para os Estados-Membros”34. Posto isto, esta Estratégia novamente definiu os objetivos da Justiça Eletrónica europeia e que se consubstanciam em “[…] facilitar o acesso à justiça e o funcionamento dos sistemas de justiça, nomeadamente em processos transfronteiras, para os cidadãos, profissionais da justiça e autoridades, tendo em conta a independência do poder judicial e a separação de poderes”. Para o efeito, concretizam-se “[…] através da simplificação e digitalização das comunicações, do acesso aos procedimentos e à informação jurídica e da ligação aos sistemas nacionais, bem como entre eles, num contexto transfronteiras”35. Assim, o caminho passa pela dotação de comunicações eletrónicas no domínio da justiça e de sistemas digitais que permitam aos cidadãos e empresas verem o seu direito de acesso à justiça viabilizado, ainda que o processo judicial tenha configuração transfronteiriça. Desta forma, o paradigma da Justiça Eletrónica deverá “facilitar a interação e a comunicação eletrónicas entre as autoridades judiciárias, bem como a comunicação com os cidadãos e os profissionais nos processos judiciais (através da videoconferência ou de intercâmbios seguros de dados eletrónicos, por exemplo), respeitando o quadro jurídico existente”36. Tal demanda a dotação de funcionalidades apenas acessíveis pelas autoridades judiciárias e a implementação de “[…] um método de autenticação uniforme ou interoperável baseado em sistemas compatíveis com os serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno”37. Ainda neste cerne, de forma a que o acesso à justiça seja efetivo, há a necessidade de continuar a atualizar o Portal Europeu de Justiça e o EUR-Lex, a fim de se continuar a disponibilizar “informação sobre os direitos dos cidadãos, a fim de contribuir para a sua sensibilização”, “informação sobre a legislação da UE, bem como sobre a legislação nacional que transpõe a legislação da UE” e

34 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 24. 35 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 12. 36 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 20. 37 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 21.

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“informação sobre as autoridades competentes”38. Afinal, o Portal Europeu de Justiça “[…] deverá continuar a ser desenvolvido no sentido de se tornar um balcão único para a justiça, proporcionando o acesso aos serviços eletrónicos ou às soluções eletrónicas”39; e o EUR-Lex “[…] deverá ser desenvolvido para continuar a satisfazer as necessidades dos cidadãos e permitir-lhes encontrar facilmente toda a informação pertinente sobre o direito da UE”40. Na senda dos anteriores, também aqui se dá um papel de relevo à participação dos profissionais da justiça na definição das necessidades em sede de justiça eletrónica. Atentos os vetores postulados na Estratégia, o Conselho adotou o Plano de Ação para a Justiça Eletrónica europeia para 2019-2023, segundo o qual os seus três objetivos são “[…] o acesso à informação, a comunicação eletrónica no domínio da justiça e a interoperabilidade”41. Com o Plano de Ação aposta-se no desenvolvimento do Portal Europeu de Justiça já que este “[…] pode ser aperfeiçoado aplicando-lhe melhorias, tais como uma ferramenta de pesquisa central ou funcionalidades dinâmicas alargadas”, a fim de “[…] reforçar ainda mais o seu papel enquanto balcão único para a justiça eletrónica europeia”42. A tendência é de o tornar mais funcional e completo para que “[t]anto o conteúdo estático como o dinâmico deverão ser complementados por novas informações e funcionalidades”43. Por sua vez, também deverá atuar, na sua veste de balcão único, como “ponto de acesso único aos registos nacionais interligados”, o qual deverá continuar a ser da responsabilidade da Comissão44. Por seu lado, o EUR-Lex é perspetivado como o meio para dar “acesso a dados jurídicos”, nomeadamente “[…] ao direito da UE, ao direito nacional que transpõe o direito da UE, à jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE

38 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 13. 39 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 15. 40 Cfr. Conselho, Estratégia de Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., parágrafo 16. 41 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023, de 13 de março de 2019, 2019/C 96/05, in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52019XG0313(02)&from=PT [acesso: 30.3.2019]. 42 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 2, parágrafo 6. 43 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 2, parágrafo 7. 44 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 2, parágrafos 8 e 9.

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bem como à jurisprudência nacional relacionada com o direito da UE”45. A fim de promover a proteção de dados pessoais, o Conselho considerou que “[...] é necessário desenvolver ferramentas automáticas para pseudonimizar ou anonimizar os dados”46. Seguindo uma das tendências detetadas quer pela Comissão, no seu Relatório de Progresso sobre o Plano de Ação de 2014-2018, e pelo Conselho, na Estratégia para a Justiça Eletrónica europeia de 2019-2023, o Plano de Ação de 2019 a 2023 prioriza a aposta na inteligência artificial ao serviço da justiça. O Conselho reputa-a “[…] como uma das grandes evoluções das tecnologias da informação e comunicação nos últimos anos”, pelo que cabe proceder a uma clarificação das suas implicações no domínio da justiça eletrónica47. O Conselho também prioriza o “intercâmbio seguro de dados”, nomeadamente através de projetos que visam verificar a viabilidade de pagamento eletrónico de custas judiciais, conforme veiculado no parágrafo 16 e projeto n.º 13 do Plano de Ação. Por sua vez, a fim de promover uma “Comunicação segura entre os cidadãos, os profissionais da justiça e as autoridades judiciárias”, o Conselho novamente individualiza a videoconferência como um meio para atingir aquele fim48. No vetor relativo à interoperabilidade – identificada como um dos objetivos definidos na Estratégia de Justiça Eletrónica –, o Conselho estabelece que “[a] interoperabilidade entre sistemas nacionais deve ser assegurada através da tecnologia e-Codex (e-Justice Communication via Online data Exchange – comunicação por troca de dados em linha no âmbito da justiça eletrónica) e do respetivo projeto de continuidade Me-Codex (Manutenção do e-Codex)”49. Através do seu estabelecimento, promove-se também uma interoperabilidade semântica na medida em que se pretende que a comunicação entre os sistemas saia facilitada através da utilização de termos jurídicos e informáticos coincidentes, diminuindo também “[…] o impacto das diferenças linguísticas através da tradução automática, libertando, dessa forma, recursos para as traduções urgen-

45 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 5, parágrafo 12. 46 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 5, parágrafo 13. 47 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 8, parágrafo 15. 48 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 13, parágrafo 17 e projeto n.º 20 “Videoconferência”. 49 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 13, parágrafo 18.

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tes”50. Afinal, na medida em que o conceito de interoperabilidade se encontra suficientemente sedimentado no contexto informático, já vários doutrinadores adivinhavam que a adoção deste método e princípio geral também como objetivo a atingir no âmbito do paradigma da Justiça Eletrónica europeia determinaria a observância de três dimensões da interoperabilidade. Assim, esta terá a capacidade de promover: - uma “interoperabilidade técnica” que ilustra a existência de “características e elementos tecnológicos que ligam sistemas informáticos, como os serviços de interconexão, os serviços de integração de dados e os protocolos de comunicação”51; - uma “interoperabilidade organizacional” na medida em que permite que os serviços competentes indicados por cada Estado-Membro congreguem, cada vez mais, competências e atribuições similares, acabando por promover uma aproximação da própria organização jurisdicional de cada Estado-Membro; - e uma “interoperabilidade semântica” na medida em que as diversas entidades mobilizadas, dos diversos Estados-Membros, têm de ser capazes de compreender o que é pedido com aquela nomenclatura, a fim de compreenderem a informação trocada. Para o efeito, é comum que esta interoperabilidade semântica se observe a partir da utilização de formulários normalizados, sendo concretizado, com este Plano de Ação, que se atuará através de um vocabulário controlado que “[...] consiste numa lista de termos utilizados para indexar conteúdos e facilitar a obtenção de informações”52. Do explanado resulta que a interoperabilidade se elevou simultaneamente, no contexto da Justiça Eletrónica europeia, a princípio geral, a método e a objetivo a prosseguir. Neste contexto, ainda que a título meramente prospetivo, parece resultar que esta Estratégia é ambiciosa e com um desígnio prospetivo asseverado. Cabe, agora, verificar se tal audácia é demonstrativa de um incremento da tutela jurisdicional dos direitos conferidos pela ordem jurídica europeia, particularmente no âmbito de litígios transfronteiriços, e se alavanca a convicção de que o Contencioso da União tem de ser definido em termos amplos, só assim se coadunando às realidades atuais e futuras.

50 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 15, parágrafo 19. 51 Cfr. Carlos E. Jiménez-Gómez, Mila Gascó-Hernández, Achieving open justice through citizen participation and transparency, New York, Hershey, 2017, p. 160 (tradução livre). 52 Cfr. Conselho, Plano de Ação para a Justiça Eletrónica Europeia para 2019-2023..., p. 15, parágrafo 20.

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3. O Contencioso da União Europeia e a necessidade de alargamento do conceito doutrinal – reflexões à luz da Justiça Eletrónica Europeia Para efeitos desta reflexão, cabe esclarecer que partimos de uma noção funcional e material ampla de “Contencioso da União Europeia”, como temos vindo a adiantar53. O Contencioso da União Europeia diz respeito ao conjunto de normas processuais e vias recursórias tendentes a promover uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União, assente numa arquitetura jurisdicional que reconhece e mobiliza quer o Tribunal de Justiça da União Europeia (enquanto tribunal organicamente europeu)54 e os tribunais nacionais, enquanto tribunais comuns ou funcionalmente europeus55. Posto isto, podemos dizer que o Contencioso da União diz respeito ao processamento jurisdicional dos direitos conferidos pela ordem jurídica europeia, quer num sentido funcional, quer num sentido material. Assim, há que reconhecer que a expressão “Contencioso da União” pode ser concetualizada a partir de dois prismas ou duas conceções: uma noção funcional e uma noção material. O Contencioso da União em sentido funcional refere-se estreitamente à arquitetura jurisdicional da União; tal significa que engloba, no seu estudo, quer o Tribunal de Justiça da União Europeia (formado, atualmente, pelo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Geral, continuando a haver possibilidade de constituição de Tribunais Especializados – artigos 19.º do TUE e, respetivamente, artigos 9.º e seguintes, 47.º e seguintes e 62.º-C do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia), quer os tribunais nacionais que, quando chamados a aplicar o direito da União, atuam como tribunais funcionalmente europeus. Afinal, “[a]través da sua tarefa hermenêutica, o TJUE assumiu um papel impulsionador do processo de integração”, tendo contribuído para a efetividade do direito da União já que «[n]ão é árduo perceber que sem o “ativismo” do TJUE não tínhamos integração europeia»56. Por sua vez, também foi este tribunal que veio reconhecer o papel preponderante dos tribunais nacionais na organização jurisdicional europeia: afinal, “[…] desde a década de 1970 que o TJUE tem afirmado que , na ausência 53 Cfr., para maiores desenvolvimentos, Joana Covelo De Abreu, Tribunais nacionais e tutela jurisdicional efetiva: da cooperação à integração no Contencioso da União Europeia, Almedina, 2019 (no prelo), pp. 107 e seguintes. 54 Cfr. Alessandra Silveira, «Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)», in Ana Paula Brandão, Francisco Pereira Coutinho, Isabel Camisão, Joana Covelo De Abreu (Coords.), Enciclopédia da União Europeia, Petrony, 2017, pp. 462 e seguintes. 55 Cfr., para maiores desenvolvimentos, Alessandra Silveira, Princípios de Direito da União Europeia. Doutrina e Jurisprudência, 2.ª ed., Atualizada e Ampliada, Quid Juris, 2011. 56 Cfr. Alessandra Silveira, «Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)..., p. 462.

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de normas processuais europeias, compete aos ordenamentos jurídicos nacionais i) designar os órgãos judiciais competentes e ii) regular as vias de direito/ recurso destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos decorrentes da ordem jurídica europeia”57. Por conta da efetividade do direito da União, “[o]s tribunais e órgãos jurisdicionais nacionais estão sujeitos à obrigação de aplicar o direito da União a todos os casos entre as autoridades nacionais e pessoas naturais ou legais ou entre estas pessoas para garantir os direitos conferidos pelo direito da União”, já que estes desempenham um “papel primário”58 na sua aplicação. Afinal, não foi pretensão do legislador originário ou derivado europeu, nem antes, nem agora, promover a criação de tribunais da União e espalhá-los pelos diversos Estados-Membros, partindo “[…] da premissa que os tribunais nacionais são entidades às quais os particulares podem recorrer independentemente da ação ou omissão de agir por uma autoridade nacional ou quando outro particular viola direitos que lhes foram conferidos pelo direito da União”59, surgindo como tribunais normais da União que atuam como uma “ponte de transição da ordem jurídica da União e [asseguram] o cumprimento do direito da União através do diálogo com o Tribunal de Justiça”60. Tal contexto jurisdicional suis generis foi estabelecido através dos acórdãos emanados ao abrigo do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE) e das decisões que foram densificando o princípio da cooperação leal ou da lealdade europeia, decorrente dos termos do artigo 4.º, n.º 3 do TUE. No mesmo sentido já nos ensinavam Fausto de Quadros e Ana Maria Guerra Martins quando entendiam que o Contencioso seria composto pelas vias de direito e pelas regras de processo aplicáveis perante os tribunais europeus61 que, segundo a lição de Alessandra Silveira, conglomeram quer os tribunais organicamente europeus (aqueles que compõem o Tribunal de Justiça da União Europeia) e os tribunais funcionalmente europeus, porque “[…] a organização judiciária europeia integra tanto uns como outros”62, pelo que “[…] funcionalmente, a estrutura jurisdicional da União Europeia abarca não só o Tribunal de 57 Cfr. Alessandra Silveira, «Tribunais nacionais», in Ana Paula Brandão, Francisco Pereira Coutinho, Isabel Camisão, Joana Covelo De Abreu (Coords.), Enciclopédia da União Europeia, Petrony, 2017, pp. 454 e seguintes. 58 Cfr. Koen Lanaerts, Ignace Maselis, Kathleen Gutman, in EU Procedural Law, Oxford EU Law Library, Oxford University Press, 2014, p. 13 (tradução livre). 59 Cfr. Koen Lanaerts, Ignace Maselis, Kathleen Gutman, in EU Procedural Law..., pp. 13-14 (tradução livre). 60 Cfr. Koen Lanaerts, Ignace Maselis, Kathleen Gutman, in EU Procedural Law..., p. 14 (tradução livre). 61 Cfr., para maiores desenvolvimentos, Fausto De Quadros, Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, 2.ª ed., Revista e Atualizada, Almedina, 2009. 62 Cfr. Alessandra Silveira, Princípios de Direito da União Europeia..., p. 36.

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Justiça da União Europeia, enquanto cápsula orgânica dos tribunais europeus, mas também os tribunais nacionais, quando aplicam direito da União Europeia, enquanto tribunais comuns ou tribunais funcionalmente europeus”63. Podemos, portanto, concluir que a noção funcional de “Contencioso da União Europeia” diz respeito ao estudo da composição, funcionamento e organização dos tribunais organicamente europeus e à análise do diálogo formal e informal estabelecido entre estes e os tribunais nacionais que, quando aplicam direito da União, se afiguram como tribunais funcionalmente europeus. Simplisticamente, diz respeito ao estudo da arquitetura institucional da União Europeia, por referência às articulações reflexivas estabelecidas entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça da União Europeia. Por seu lado, a noção material de “Contencioso da união Europeia” diz respeito ao estudo do conjunto de regras de processo e de vias recursórias tendentes à efetivação dos direitos decorrentes da ordem jurídica europeia. Neste contexto, há uma necessidade de incluir não só as vias processuais que correm perante os tribunais organicamente europeus e as normas de processo que as estabelecem mas proceder ao seu alargamento a fim de incluir as normas processuais estabelecidas pelo direito da União, através de atos normativos de direito derivado e, bem assim, as normas processuais nacionais que estabelecem como os processos nacionais tramitam mas que, quando mobilizadas para regular um processo onde o direito da União é invocável e / ou aplicável, são, por força da autonomia processual dos Estados-Membros, normas europeias quanto à função, ainda que nacionais quanto à origem. Afinal, o ordenamento jurídico europeu tem vindo a adotar e a atualizar, também por conta destes desígnios digitais, novos processos-tipo, a fim de facilitar a tramitação transfronteiriça de processos e, bem assim, tem envidado esforços para adotar mecanismos instrumentais facilitadores de tal tramitação processual. Tais soluções não desvirtuam a arquitetura jurisdicional da União e têm de ser aplicadas pelos tribunais nacionais, embora as dúvidas que possam emergir serão debeladas, pelo Tribunal de Justiça, através do reenvio prejudicial. É o que acontece no âmbito da integração judiciária em matéria civil, nomeadamente, quanto aos processos-tipo, com as ações de pequeno montante e as injunções europeias (respetivamente, Regulamentos n.ºs 861/2007 e 1896/2006, na versão que lhes foi dada pelo Regulamento n.º 2015/2421) e o arresto de contas bancárias (Regulamento n.º 655/2014) e, quanto a atos jurídicos que estabelecem regimes instrumentais, a obtenção transfronteiriça de prova (Regulamento n.º 1201/2001, agora em sede de revisão legislativa), as citações e notificações de documentos judiciais e extrajudiciais (Regulamento n.º 1393/2007, agora também em sede de revisão legislativa), o estabelecimento da competência, do reconheci63 Cfr. Joana Covelo De Abreu, Tribunais nacionais e tutela jurisdicional efetiva..., p. 497.

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mento e da execução de decisões (Regulamento n.º 1215/2012) e as normas mínimas em matéria de apoio judiciário em circunstâncias de carência económica (Diretiva n.º 2003/8/CE). Acresce que, atento o conceito funcional amplo que a doutrina já vem acomodando, deixou “[…] de fazer sentido que, materialmente, o Contencioso da União Europeia [continuasse] a abarcar apenas as regras de processo dos Regulamentos de Processo dos tribunais organicamente europeus e das disposições dos Tratados, devendo também contemplar as demais normas processuais decorrentes de atos jurídicos da União que estabelecem vias processuais próprias para serem observadas pelos tribunais nacionais, quando o direito europeu é chamado à colação”64. Assim, cabe ainda precisar que o princípio da autonomia processual dos Estados-Membros estabelece que são os Estados-Membros os competentes para criarem as vias processuais adequadas à tutela jurisdicional dos direitos conferidos pela ordem jurídica europeia. Deste modo, são as normas processuais nacionais que são mobilizadas para a tramitação de uma ação que corre perante os tribunais nacionais quando são chamados a aplicar direito da União. Neste caso, as normas processuais nacionais poderão também subsumir-se ao Contencioso da União na medida em que são as que estabelecem o pano processual para que a ação siga os seus termos e, em caso de gerarem um tratamento menos favorável para o litígio onde o direito da União é mobilizável do que para um litígio similar de natureza interna ou se determinarem uma excessiva dificuldade ou impossibilidade, na prática, ao exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica europeia, serão objeto de teste (e consequente afastamento, se esse for o caso) à luz dos princípios da equivalência e da efetividade (em sentido estrito) respetivamente. Posto nestes termos, verificamos que o aprofundamento do paradigma da Justiça Eletrónica Europeia de 2019 a 2023 cria as condições necessárias a que se considere que tal conceito alargado de Contencioso recebeu maior fôlego. Afinal, as atualizações e novos objetivos em sede de Justiça Eletrónica vêm reforçar os mecanismos digitais ao serviço da justiça, visando que a mesma se continue a operar numa perspetiva de proximidade e que, nomeadamente em casos transfronteiriços, os tribunais nacionais se possam articular através de mecanismos tecnológicos e digitais e possam granjear maior celeridade processual pela utilização de formulários normalizados, pelo recurso à videoconferência e pelo estabelecimento de plataformas de submissão de peças processuais e de pagamento de custas judiciais à distância. Ora, tais objetivos – e a sua vivificação em legislação adotada no contexto da União e / ou através dos esforços harmonizados dos diversos Estados-Membros – tem por teleologia imprimir uma maior efetividade 64 Cfr. Joana Covelo De Abreu, Tribunais nacionais e tutela jurisdicional efetiva..., p. 497.

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à tutela jurisdicional que é possível assegurar-se no contexto alargado da União, mobilizando, para o efeito, quer os tribunais nacionais, quer o Tribunal de Justiça. Assim, a não atualização do conceito de “Contencioso da União” conduziria a um descompasso entre a realidade e aquilo que, aprioristicamente, começou por fazer parte do seu estudo e objeto.

4. Conclusões Os desígnios associados à nova Estratégia e ao novo Plano de Ação em Justiça Eletrónica europeia de 2019 a 2023 visam simultaneamente adensar objetivos anteriores e alcançar novos desenvolvimentos, envidando, sempre que necessário, estudos prospetivos. Na realidade, o Conselho voltou a perspetivar o Portal Europeu de Justiça e o EUR-Lex como dois sites relevantes em sede de prestação de informações acessíveis aos particulares, aos juízes e autoridades judiciais e aos demais profissionais na área da justiça, reiterando que o Portal Europeu de Justiça deverá continuar a atuar como um balcão único. Por outro lado, reconheceram-se novos princípios associados a estas dimensões digitais e elevou-se a interoperabilidade a método, princípio e objetivo a prosseguir com este Plano de Ação. Afinal, se até aqui este figurava ao serviço da Administração Pública em linha, as instituições europeias passaram a reconhecer a relação umbilical entre os paradigmas da Administração Pública em linha e da Justiça Eletrónica europeia, por ambos serem concretizadores do estabelecimento, desenvolvimento e sedimentação de um Mercado Único Digital, o que ditou que o método já testado no âmbito dos serviços administrativos também pudesse dar cartas na área da justiça, especificamente porque havia prévios projetos europeus bem sucedidos em procederem à articulação digital dos sistemas digitais de justiça de diversos Estados-Membros (como era e continua a ser o caso do e-Codex). Ainda neste âmbito, quer o Conselho, quer a Comissão reconheceram que a inteligência artificial e a blockchain constituem tecnologias que não podem ser desconsideradas também na justiça, havendo a necessidade de considerar de que forma tais poderão ser aproveitadas. Assim, os desenvolvimentos auscultados e estabelecidos até 2023 visam facilitar as interações entre os serviços judiciais das diversas autoridades judiciárias nacionais, nomeadamente apostando nos meios digitais para as suas comunicações e intercâmbio de informações. Acresce que tecnologias como a do e-Codex serão alargadas a todos os Estados-Membros para promover maior celeridade processual, nomeadamente em sede de processos com lastro transfronteiriço. Há ainda uma preocupação com uma harmonização de sistemas, nomeadamente em sede de pagamento de custas processuais e, bem assim, uma 44


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aposta na normalização semântica horizontal (interoperabilidade semântica) decorrente do cada vez maior uso de formulários interativos. Atentos tais desenvolvimentos, resulta evidente como tais desígnios demandam, empiricamente, a atualização e sedimentação de um novo conceito alargado de “Contencioso da União Europeia” a fim de ser viável o estudo, neste contexto, do impacto destes desideratos digitais e tecnológicos nas soluções processuais e na arquitetura jurisdicional da União. Por sua vez, também aqui a tutela jurisdicional efetiva funciona como o fundamento e a teleologia: quer o estabelecimento de um conceito amplo de Contencioso, quer os incrementos decorrentes de um novo quadro relativo à Justiça Eletrónica europeia visam a promoção e a alavancagem de uma tutela jurisdicional efetiva. Afinal, os desenvolvimentos em sede de Justiça Eletrónica têm em vista promover um acesso à justiça, quer pela parte com o ímpeto jurisdicional ativo, quer pela parte que irá exercer os seus direitos de defesa, de forma célere, acedendo a um tribunal imparcial e independente e evitando que gastos excessivos pudessem ditar o afastamento, em juízo, de uma determinada parte, apostando, inclusivamente, na realização de audiências à distância e através de videoconferência para evitar gastos inúteis à boa tramitação do processo. Acresce que todas as atividades tendentes à melhor e mais facilitada comunicação entre tribunais de diferentes Estados-Membros e a disponibilização de informações através de um balcão único instrumentalmente contribuem para que a ativação judicial de direitos conferidos pela ordem jurídica europeia se acomode também na atuação dos tribunais e na forma de pleitear das partes. Ora, se assim é, o Contencioso da União tem de poder e dever estudar estes novos inputs e, bem assim, estes deverão refletir-se na sua aperceção e concetualização, não podendo a sua noção ficar estanque e imutável. Este quadro da Justiça Eletrónica europeia é ambicioso, mas adequado aos desafios que parecem raiar das dimensões digitais e suficientemente amplo para acomodar novas realidades que possam surgir. Só o tempo o dirá, mas parece-nos evidente que é mais um passo significativo para uma substancial melhoria na qualidade da tutela jurisdicional efetiva decorrente da atuação dos tribunais funcionalmente europeus e mais um marco decisivo de que o processo de integração se faz pela sua clara subsunção ao quadro jurisdicional da União.

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DIGITALIZAÇÕES E ANALOGISMOS – (RE)PRODUÇÕES E EQUIVALÊNCIAS José C. Vegar Alves Velho Assistente Convidado na EDUM Investigador Júnior do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação

Resumo: O tempo presente vive cada vez mais acelerado para o futuro, esbatendo a duração das suas dimensões e as fronteiras dos seus processos. Também no direito se vem revelando, mutatis mutandis, o mesmo fenómeno. A abertura pluridisciplinar a que se tem assistido ultimamente tem deslumbrado o jurista na reputação de novas formas de meditação jurídica/judiciária, nomeadamente através do uso de ferramentas informáticas e/ou digitais, que vêm conquistando espaços cada vez mais abrangentes tradicionalmente reservados ao particular modo de ser do direito. Se a sedução provocada pelas virtudes da digitalização dos tempos não pode ser desprezada, desde logo pela sua capacidade de concatenar grandes quantidades de informação e estabelecer padrões de semelhanças e diferenças, não se crê poder-se, igualmente, olvidar as especificidades da particular racionalidade jurídica e da sua aplicação judicativo-decisória, sob pena de uma vera mudança de paradigma sem narrativa que a sustente, dispersando o passado, o presente e o futuro, descontinuando-os. O presente texto almeja, simples e modestamente, a observação de alguns aspectos particulares que parece, em abstracto, servirem para justificar jurídico-metodologicamente alguns pontos de contacto entre ambas as linguagens, jurídica e digital, nomeadamente pelo uso do raciocínio analógico, mas que não partilham, em ambas as searas, o mesmo radical. Não se apresenta, pois, isenta de perigos a virtualização do direito.

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Digitalizações e Analogismos – (Re)Produções e Equivalências José C. Vegar Alves Velho

Palavras-chave: Decisão Judicial; Analogia; Informática; Digitalização. Quando, empiricamente, se pensa no termo “digitalização”, talvez a primeira noção que nos assalte seja o acto de converter, por exemplo, um documento físico, através de um scanner, num ficheiro digital para tratamento informático. O mesmo é dizer, grosso modo, que, nesta perspectiva, a digitalização consistirá na apreensão das qualidades físicas ou aparentes de um objecto existente na vida real, neste caso um documento, e na sua transformação em linguagem informatizada, que permitirá a sua utilização num computador ou numa máquina, capaz de decifrar essa particular linguagem, transportando a realidade física apreendida para uma realidade informática, que dela constituirá cópia, ou uma sua reprodução, que, em função das suas potencialidades, lhes possibilita uso próprio, assente no potencial virtual dessas qualidades, que permitem hoje, inclusivamente, de forma digital, a possibilidade de criação de autênticos mundos alternativos – análogos –, como no caso da chamada realidade virtual. Não deixa de ser curioso notar que o vocábulo virtual partilha o radical latino da palavra virtus, que se refere, precisamente, às qualidades do Homem, ou à suceptibilidade de realização ou exercício de algo que existe em potência. Ora, se num sentido corrente a aceitação destas potencialidades não levanta problemas de monta – mesmo o facto das digitalizações constituírem cópias ou reproduções das características aparentes de um objecto –, parece que, quando aplicado ao direito, precisamente em função do específico objecto jurídico, e quando as pretensões nos aparecem mais ambiciosas que a mera instrumentalidade das ferramentas digitais, não pode deixar de fazer notar-se algumas especificidades curiosas, quando postas ambas linguagens em coordenação. Os trabalhos jusmetodológicos que alimentaram o direito nas últimas décadas têm parecido procurar, acima de tudo, oferecer um novo impulso epistemológico focado mormente na situação do direito no discurso prático geral e, no mesmo embalo, na vincada específica racionalidade da praxis jurídica. Tais ofertas têm incitado amplos debates no cerne do nosso estudo, ora na consideração das canónicas formas logísticas – ou lógicas – de estruturação do pensamento, ora, num pendor mais hermenêutico, do seu alicerçamento e nos seus encadeamentos tópicos1. A isto não é indiferente a perspetiva que se adote da própria noção do jurídico, nem das suas correlações ideológicas e/ou valorativas. 1 A pluralidade de abordagens acerca da lógica/racionalidade jurídica torna-se mais evidente, no sentido referido, após a 2.ª Grande Guerra. Se, por um lado, autores como Klug, Von Wright ou, parcialmente, Kalinowski, assentaram pressupostos na lógica formal aplicada ao direito, encontra-se, praticamente ao mesmo tempo, o restauro do carácter eminentemente argumentativo do direito em autores como Viehweg, Perelman ou Toulmin, em clara rejeição daquele tipo de análise.

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A abertura pluridisciplinar a que se tem assistido no direito tem também deslumbrado o cultor jusmetodológico, hoje capaz de observações mais amplas e plurais sobre o fenómeno jurídico. Esta tendência, associada ao percurso próprio que as ciências vêm tomando e às inovações tecnológicas a que se tem vindo a assistir, nomeadamente em sede informática, parece abrir um “novo” universo em expansão de informação juridicamente relevante na/para a meditação jurídica. As distâncias que se desenharam entre tais componentes nem sempre, porém, parecem retratar o que as une ou pode unir, mas antes o que as separa, escapando-se a uma reconstrução racional, ou, pelo menos, funcional dessas diferenças, sem que, nesses desafios de comunhão, naturalmente, se admita a perda da natureza e objecto particulares da coisa jurídica. E, de facto, nessa senda, amiúde, independentemente dos pontos de partida referidos, os resultados de tal desiderato podem apresentar-se contraintuitivos ao jurista.

1. Uma perspectiva analógica do direito Num estudo que passou com pouco impacto, publicado em 1965, Arthur Kaufmann defendeu que a realização do direito consistiria não numa qualquer operação ou conclusão de tipo lógico-formal, mas num processo de tipo analógico2. Mais concretamente, defendeu o Ilustre Professor que o direito consistiria acima de tudo na correspondência entre ser e dever ser, entre a norma legal e o caso concreto, e que só quando tal correspondência se leva à produção, o direito se concretiza e é actual. Por assim ser, o conhecimento, aplicação e efectividade do direito basear-se-ia numa ontologia de tipo analógico3 4. Mas, o que resulta evidente é que entre as circunstâncias que a norma regula, e aquelas que efectivamente são levadas ao julgamento, nunca existe uma absoluta correspondência. Não surpreende, pois, dizer, ilustrativamente, que o direito na sua vertente normativa não resolve caso concreto algum: nenhum, seguramente, da vida real, por estribo destes no recorte da realidade das coisas supostamente acontecidas; nenhum da vida ideal, na medida em que as qualidades fácticas das normas têm carácter deontológico e, portanto, têm qualidade

2 Arthur Kaufmann, Analogia y Naturaleza de la Cosa – Hacia una Teoria de la Comprension Juridica, Santiago, Ed. Juridica de Chile, 1976. 3 Idem, p. 58. 4 No mesmo sentido, sobre as conclusões daquele estudo, cf. Giuseppe Zaccaria, “Analogy as legal reasoning – The Hermeneutic Foundation of the Analogical Procedure”, in Patrick Nerhot (ed.), Legal Knowledge and Analogy – Fragments of Legal Epistemology, Hermeneutics and Linguistics, Law and Philosophy Library, Vol. 13, Springer Science Business Media BV, 1991, p. 43.

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de critério: tal como a humanidade à imagem divina5, não há identificação, mas aspiração, semelhança. É certo que é hoje dominante um certo filão metodológico centrado essencialmente em novos arejos hermenêuticos, onde se procura retratar a relação norma-facto numa perspectiva dinâmica, que têm sublinhado o caracter eminentemente argumentativo-construtivo do direito e das suas decisões e, igualmente, reforçando que, sob uma óptica epistemológica, toda a interpretação jurídica é susceptível de acolhimento analógico6, já que será através dela que se poderá perceber que tipo de identidade existe na diferença, e qual a coerência aproximativa das distintas dimensões em estudo, desde que, naturalmente, se abdique da ideia de certeza e identidade total. Mais do que uma constatação de identidade perfeita, o fenómeno lógico-jurídico, parece, assim, mais próximo de uma “substancial analogia” entre os factos normativamente disciplinados e as circunstâncias de facto que podem constituir a referência concreta da sua aplicação7. Entre casos particulares sujeitos ao crivo do direito, entre o ser e o dever ser só seria possível ajuizar coincidências suficientes em razão de um centro de referência comum, o mesmo é dizer, certo grau de semelhanças – ou diferenças – que permitam ao intérprete estabelecer correspondências entre o dever-ser normativo e o caso sub iudice. O carácter distintivo da específica ratio jurídica, o estabelecimento dessas correspondências, destarte, serve como modus construtivo, de radicação essencial, na medida em que é em tal adequação que se realiza e actualiza o direito. O processo analógico, neste mister, assumir-se-á definitivamente virtual, já que se conduz a um procedimento de equivalência racional de realidades, virtuais realidades para efeitos jurídicos, incompatíveis com clonagem. A norma, assim considerada, não poderá consistir num separado conjunto de elementos da sua referência, mas antes num polo participante nesse gradual ajustamento e aproximação, no qual a efectiva decisão produtiva e inovadoramente se adequa. Num remate, que do conhecimento do que é diferente se procure, efectivamente, alcançar a igualdade ou isonomia, elementos fundantes da própria ideia de direito e de unidade. Ora, se se assumir esta ideia, parece fazer-se inclinar a balança bem mais na tónica fáctico-valorativa do que normativa em sentido estrito. 5 A impressiva observação é de Giuseppe Zaccaria. Idem, p.44. 6 Veja-se, por exemplo, Manuel Salguero, Argumentación jurídica por analogia, Madrid, Marcial Pons, 2002. 7 Continuamos a navegar nas meditações daquela publicação de Kaufmann, e de Giuseppe Zaccaria acerca da mesma obra. Cf. Giuseppe Zaccaria, op. cit., p.47.

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Parece, pois, aparentemente, justificar-se a abertura da porta a novas formas de conhecimento na prática jurídica, nomeadamente pela possibilidade de intervenção da reconhecida capacidade informática e da inteligência artificial de estabelecer semelhanças e diferenças e detectar padrões, ou digerir grandes quantidades de informação. O analógico e o digital, o virtual e o real, conflituantes em tantas outras áreas e vulgarmente usados como antónimos, parecem, aqui, encontrar solo fértil para prosperar. Todavia, apesar das aparências, esta relação não está livre de dificuldades e desafios. Um estudo recente pode servir de mote para alguns deles. Em Outubro de 2016 foi publicado um estudo titulado “Predicting Judicial Decisions of the ECHR: a Natural Language Processing Perspective” onde engenhos deste tipo conseguiram prever certamente decisões judiciais em razões médias de 79% dos casos neles induzidos, quando comparados com as decisões tomadas pelos juízes humanos na amostra8. A análise realizada revestiu essencialmente a forma de análise textual e a busca de similaridades/padrões linguísticos como critério fundante da previsão. Independentemente dos seus vários méritos, nesta pequena apresentação serão apenas endereçados alguns aspectos lidos nos seus resultados, que parecem confirmar estas ideias e fascínios: a mais certeira predição baseada nas circunstâncias do caso sugere uma forte relação entre os factos de uma causa, tal como formulados pelo Tribunal, e a decisão dos juízes. Os standards ou tópicos apresentam-se, igualmente, fortes indicadores da decisão. Os argumentos jurídico-legais têm, de acordo com o estudo, uma correlação menor com as decisões do Tribunal9.

2. Factos, analogia e decisão judicial A questão da relevância jurídico-processual dos factos tem sido objecto de amplas discussões doutrinárias, e pode ser visto de duas bandas. Por um lado, pode observar-se o problema olhando para a investigação de factos, sua aquisição e fixação num processo, i.e, enquanto representação de certo estado de coisas ocorridas vertidas no processo. Aqui torna-se mais evidente o conjunto de problemas epistemológicos e metodológicos que a prova vem enfrentando, na sua função de representação de realidade acontecida com

8 Vd, Nikolaos Aletras (et. al.), Predicting Judicial Decisions of the European Court of Human Rights: a Natural Language Processing Perspective [em linha], PeerJ Comp. Sci., 2016, disponível em https://peerj.com/articles/cs-93/. 9 Idem, p. 11.

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almejo ao valor de verdade10. Talvez seja este particular aspecto que vem oferecendo o maior conjunto de seduções ao recurso ao mundo digital, na crença da sua objectividade, atentas as difusas discussões acerca do que constituirá a verdade, nomeadamente em ambiente jurídico. Por outro lado, fixado tal prius, ou partindo da assunção da sua cabal capacidade representativa da realidade, em maior em menor grau, da sua relevância para efeitos decisórios, aqui se colocando a tónica naquilo que mais vulgarmente se designa por valoração. A raiz do problema parece colocar-se, desde logo, pela razão de não existir uma vera noção unívoca de facto para o direito – que não parece possível, se não em definição circular –, e, portanto, de existirem, ao mesmo tempo, vários tipos de facto relevantes para o direito e nenhum ao mesmo tempo, já que todos o são potencialmente – virtualmente –, e nenhum o é imanentemente. Se se partir do que há pouco se deixou dito, de que a regra jurídica não resolve caso concreto algum, nem os factos contém imanentemente sentido jurídico por si só, mesmo para efeitos normativos, mas que o direito se realiza quando se procura fazer corresponder um facto a um querer deontológico, que o valida como tal, numa relação de adequação, pode desde já anunciar-se a primeira observação: a relação de adequação que se menciona, que atribui aos factos a qualidade de jurídicos, é, desde logo, uma decisão valorativa, que realiza a virtualidade neles contida. O raciocínio metodológico analógico ocorre geneticamente, e é valorativo na sua determinação, impondo sempre, por isso, um juízo de conformação, e, por fim, uma decisão, pelo que não se reduz à determinação de meros padrões de qualidades aparentes dos factos em si, já que isso seria, de alguma forma, admitir uma certa caracterização jurídica da realidade em si mesma, i.e., de factos imanentemente jurídicos que constituiriam um sistema fechado de realidades para o direito. A doutrina vem, ademais, alertando para algumas dificuldades cognoscitivas que, em certa medida, são comuns a qualquer processo de descoberta de factos passados, e que o jurista também vem enfrentando: a título de exemplo, vêm a psicologia jurídica e as neurociências, cada vez mais, chamando a atenção para condicionantes existentes na reconstrução de putativas realidades acontecidas, em razão da nossa própria condição humana, cuja representação nem sem-

10 Cf. Maria Clara Calheiros, Para uma Teoria da Prova, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, pp. 57-98. Particular atenção dedicou a este tema Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, 2.ª ed. Madrid, Editorial Trotta, 2005, pp. 21-87. Ainda, do mesmo Autor, pode ler-se Michele Taruffo, Simplemente la Verdad – El juez y la Contrucción de los Hechos, Madrid, Marcial Pons, 2010, pp. 89-153.

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pre coincidirá com a objectividade que lhe é atribuída no mundo jurídico11, ou o papel das emoções no universo de acção humana12, cuja digitalização parece poder ou querer eliminar. É esta percepção, parcialmente, que tem vindo a fazer notar que, na verdade, os factos constantes nos processos não são os factos entendidos como a realidade empírica acontecida, como objectos fenoménicos, mas antes a sua representação, i.e., enunciados de factos, cujo grau de verificabilidade assenta na probabilidade/virtualidade13. No mundo dos fenómenos, a realidade acontece sem qualquer consideração conceptual ou valorativa. Simplesmente... acontece. Só assim considerando faz sentido que se fale em factos fáceis ou difíceis, ou, em geral, se possam tipificar categorias de factos distintos. Não existem, seguramente, realidades fáceis ou difíceis; o que haverá é factos mais evidentes ou menos evidentes, com maiores ou menores dificuldades na sua enunciação ou qualificação. Sem essa relação correspondente entre a realidade empírica e a sua relevância para efeitos decisórios, sem a tessitura diferencial, que pré-existe no momento da sua enunciação e fixação, os factos são só o que são ou podem ser: vida, independente de categorias conceptuais. O momento do seu vaticínio como jurídicos é ontológico e co-comunga da decisão final para efeitos normativos. E implica, sempre, uma adesão decisiva e própria. Ao não se operar no mundo das equivalências matemáticas, todo o acto de fixação de factos para efeitos jurídicos é, em si mesmo, um acto decisório ou performativo, construtivo. A realidade levada aos tribunais depende, desde logo, da configuração que lhe é dada, sempre sujeita a decisões prévias das partes, e das limitações epistemológicas e processuais que se dispõe, entre outros factores. Os vínculos a estabelecer não poderão, assim, ser simbólicos, nem poderão ser aferidos sob uma noção absoluta de verdade como realidade acontecida, cujo critério não se conhece. Serão, antes, afinidade, proporção e semelhança e adequação, ideias que impõe um critério decisório na sua afirmação. Existem ainda elementos sistemáticos a considerar, que radicam precisamente no desenho das ligações que também caracterizam o problema como jurídico. Serão circunstâncias que não serão puramente jurídicas, nem puramente fácticas, se se quiser continuar a distinção, mas antes regras que operam direc11 Maria Clara Calheiros, op. cit., pp. 156-158. 12 Neste domínio, pode ler-se a reconhecida obra de António Damásio. A provocação encontra-se explícita em O Livro da Consciência – A Construção do Cérebro Consciente, s.l., Círculo de Leitores, 2010, pp. 347-349. 13 Cf., por todos, Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, op. cit., pp.113-119.

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tamente no exercício da tessitura de correspondências, o que bem serve para sublinhar a identidade ontológica, criadora, do processo de estabelecimento da rede como o “jurídico”, que operam independentemente das representações das realidades empíricas. Porque há necessidade de chegar a uma fixação autorizada dos factos num processo, existem expedientes processuais que autorizam essa fixação, mesmo quando ela não resulte clara, como a técnica das presunções legais ou, reflexamente, as respeitantes ao ónus da prova. Normas há, ademais, cuja existência é justificada precisamente por essa ausência de certeza. Mais das vezes, tais regras inclinam-se a perspectivas ou opções ideológicas do legislador orientadas a protecção de valores ou eficiência, cuja historicidade é evidente, que muitos autores vêm também configurando como limitações a descoberta dos factos em razão do valor da verdade14, e que não assumem qualquer valor lógico intrínseco, impondo, novamente, valoração e decisão. A propósito, ainda, dos enunciados fácticos, pode levar-se a discussão mais longe, se se somarem os problemas hermenêuticos puros, como seja, por exemplo, os decorrentes da textura aberta da linguagem que os representam15. Mesmo admitindo que exista um sentido de núcleo de cada conceito que pode ser balizado para efeitos normativos, ele apenas o é na medida da sua localização na rede, novamente imposta por decisão, mais evidentemente, se se assumir que o juízo analógico parte da impossibilidade de univocidade e na justificação de um ponto de referência. Considerar o facto provado para efeitos processuais, significará, aliás, que considerando os dados probatórios disponíveis, se decidiu, se autoriza em conclusão, uma das virtuais hipóteses referentes a certo facto, ponderadas as suas razões. A possibilidade preditiva e reprodutiva baseada nos factos puros haveria, então, que partir da assunção da univocidade da realidade fenoménica, o que apenas em ideal se poderá conceber e, como decorrência, que a realidade factual seria logicamente verdadeira – porque lógica –, portanto, porque susceptível de inferências lógico-formais, previsível e replicável, e em última análise, justa. Só assim se assimilariam as equivalências formais e os resultados pretendidos com o direito, a identificação dos fenómenos com os valores, unidimensionalmente, fazendo identificar as noções de verdade, validade e justiça, o que não parece ser possível nem desejável. 14 Pode ver-se, a este propósito, Marina Gascón Abellan, Los Hechos en el Derecho – Bases Argumentales de la Prueba, 3ª ed. Madrid, Marcial Pons, 2010, pp. 113-140. 15 O problema é amplamente reconhecido na filosofia jurídica. Numa abordagem ilustrativa, Josep Moreso i Mateos, Lógica, Argumentación e Interpretación en el Derecho, Barcelona, Editorial UOC, 2005, pp. 22-31.

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No âmbito do discurso prático, os seres humanos agem pelas mais variadas razões apesar das aparências: há plúrimas componentes que influem no seu comportamento e que determinam as suas volições e ações. A operação da máquina a que se aludiu não incidiu sobre factos nos mesmos termos em que o faz o julgador que se retratou, seja empiricamente, seja na sua categorização ou interpretação, mas antes sobre os seus enunciados textuais, as suas representações, produto decisório orientado já à sentença final. Tal como, afinal, num uso possível da digitalização das aparências dum documento, no sentido empírico acima atribuído. Mas se os polos da analogia constituem ser e dever ser, se decidir é encontrar o ponto de referência e equilíbrio comuns, as operações são incindíveis e constroem-se à medida que se constrói o processo analógico-decisório. Não surpreende, igualmente, a leitura daquele estudo quanto ao grau elevado de eficácia “preditiva” dos standards ou dos tópicos, dada a sua ainda mais evidente carga valorativa, ou a sua componente justificativa ou performativa. Se os lermos como noções médias de preenchimento conceptual, compostas de factos plurais e complexos, em categorias referenciais, indicam, já, esse núcleo de conformidade com o logos num resultado de adequação decidida; são, ao mesmo tempo, decisões e acções constitutivas de uma certa realidade, cujo ajuste ou não ao mundo se encontra já potencialmente decidido. Restará, quanto muito, notar que a função da linguagem se identifica, e que tem um papel percursor ou constitutivo da acção decisória, no seu sentido mais justificativo e argumentativo. E que na sua função uniformizadora, o tribunal tende a utilizar, em certo momento, uma argumentação valorativa mais ou menos homogénea, coerente. Nada disto, porém, poderá surpreender o jurista, na época da exigência de motivação das decisões judiciais e na necessidade de exposição das razões de decisão e satisfação da sua função social. Mas admitir-se o resultado contrário ao obtido seria admitir a falta de coerência da decisão judicial e das funções do Tribunal, uma assíntese lógica entre o raciocínio do juiz e a decisão final e a desadequação da sua função social, problema distinto do que ora se trata. A mais baixa margem de sucesso da previsibilidade linguística dos argumentos jurídicos também não surpreende, já que estes assistem a escolha da decisão e muitas vezes assentam em usos retóricos que a condicionam, o que parece sublinhar as dificuldades apontadas que se enfrentam na decisão judicial e nos procedimentos/factores argumentativos que espoletam a decisão, bem como da função da sua linguagem no estabelecimento de nexos que fundamentam a igualdade na diferença.

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Digitalizações e Analogismos – (Re)Produções e Equivalências José C. Vegar Alves Velho

Existirá, pois, um eterno problema de compreensão entre as duas linguagens e os seus conceitos, mesmo quando aparentemente partilhem os fins e os termos?

3. O analógico e o digital. Considerações finais. O raciocínio analógico, enquanto relação de conceitos ou tipos, e relação de relações, poderá assumir uma função sistemática heurística importante. Parece, pois, ser capaz de gerar novas potenciais questões, assim se alargando o raio compreensivo em função do caso concreto, ao mesmo tempo que, em cada geração ou aplicação, se justifica o sistema ou a referência a ajuizar, avaliando-a. Todavia, aquilo que parecem ser as virtudes da digitalização do direito, não poderão reduzir-se à captação das aparências ou constatações que espoletam os casos a decidir, já que a reprodução de factos que constituem as questões a decidir nunca são idênticas cópias entre si, mas, quanto muito, serão susceptíveis de re-produção em cada aplicação concreta. A linguagem jurídica no mundo virtual, nesse das qualidades e virtudes do Homem, operará, assim, por equivalências racionais de carácter analógico; consequentemente, o modelo poderá ser concebido como um sistema tipologicamente aberto, onde existirão, inevitavelmente, como decorrência, espaços a preencher pelo intérprete/aplicador, a serem evidenciados pelos casos concretos, susceptíveis de justificação. Considerando que a norma ou standard não contém um conjunto exaustivo de possibilidades especificadas de preenchimento, o caso concreto mantém-se aberto a processos criativo-valorativos, sendo que o analogismo pode ser conformado como a determinação de uma possível versão particular da norma16 ou standard, numa vera virtual realidade, mas que não partilha o fundo com o sentido mais comum que lhe é atribuído no mundo digital. Paradoxalmente, não deixa, porém, de ser provocador que, abstractamente, fruto do seu modus concreto de operar, esta mesma racionalidade possa promover, pelo menos indirectamente, a possibilidade abstracta de melhoria contínua do sistema por auto-aprendizagem e adaptação modelar, terreno hoje aberto e concedido aos usos do mundo digital e da inteligência artificial, ainda que não isento de perigos. 16 No mesmo sentido, cf. Manuel Salguero, “Aplicación analógica de las normas y creación judical del Derecho”, in Novos Estudos Jurídicos - Volume 8 - No 3 - set./dez. 2003, p.501-577. Também, Karl-heinz Ladeur, “The Analogy Between Logic and Dialogic of Law”, in Patrick Nerhot (ed.), Legal Knowledge and Analogy – Fragments of Legal Epistemology, Hermeneutics and Linguistics, Law and Philosophy Library, Vol. 13, Springer Science+Business Media BV, 1991, p. 33.

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Mas, se tal encanto parece (con)vencer algumas das agruras das limitações práticas da justiça e da precisão do farol de verdade e seus relativismos, e dalgumas imperfeições apontadas à condição humana, não poderá deixar de levar à necessária reconsideração das específicas funções e limites da actividade dos juízes e da sua discricionariedade, das noções de certeza jurídica ou do conjunto de espaços reservados ao Legislador e aos Tribunais, nas suas vinculações recíprocas, cujo pano de fundo se assume essencialmente ideológico, mas com dramáticas repercussões práticas, que se podem traduzir numa radical mudança de paradigma, próxima do que algumas experiências históricas nos ensinaram, numa renovada crença em absolutos, que o método particular que o incita parece, porém, negar radicalmente. O brevemente exposto servirá apenas para notar que a desconsideração de alguns aspectos particulares da racionalidade judiciária poderá levar a resultados indesejáveis, de forma mais ou menos oculta, bastando manipular os aparentemente similares conteúdos analógicos de partida, sem prescindir do importante papel que tecnologia pode ter ao serviço da Justiça, e que, em caso de incompreensão, será a linguagem daquela que tenderá a prevalecer. Haverá, pois, antes de mais, que conceber o papel fundamental da Pessoa irrepetível, centro da ideia jurídica, no virtual mundo digital; se a Pessoa digitalizada, se a Pessoa virtualizada, e, bem assim, qual dos dígitos se colocará no braço armado do Direito neste imparável fenómeno entre diferentes universos de realidades – diferentes conceitos de realidade, e diferentes conceitos de virtualidade.

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A VÍTIMA E A CONVENÇÃO DE ISTAMBUL: (NOVOS) DESAFIOS PARA O ORDENAMENTO JURÍDICOPENAL PORTUGUÊS, EM ESPECIAL NO CONTEXTO DOS CRIMES SEXUAIS1 Margarida Santos Professora na Escola de Direito da Universidade do Minho Membro Integrado do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov)

1 Este texto corresponde à comunicação apresentada nas Jornadas Comemorativas dos 25 anos da Escola de Direito da Universidade do Minho Que Escola? Que Direito? - Direito e Pessoa no Mundo Digital, que ocorreu no dia 15 de março de 2019. Reflete uma temática a que temos vindo a dar destaque na nossa investigação. Nessa medida, o presente texto desenvolve e atualiza algumas das reflexões trazidas a lume através dos seguintes textos, para os quais remetemos: «Implicações da Convenção de Istambul para o ordenamento jurídico-penal português: algumas reflexões a propósito dos novos tipos legais de crime de mutilação genital feminina, casamento forçado e perseguição», in Igualdade de Género: Velhos e Novos Desafios, no prelo, 2019; «Convenção de Istambul, crimes sexuais e consentimento: breves apontamentos», in Margarida Santos/Helena Grangeia (coord.), Novos desafios em torno da proteção da vítima: uma perspetiva multidisciplinar, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/novos-desafios-em-torno-da-protecao-da-vitima-uma-perspetiva-multidisciplinar/; «A Convenção de Istambul e a proteção das mulheres contra a violência: uma visão panorâmica», in Maria Elizabeth Rocha, Marli M. Moraes da Costa e Ricardo Hermany (org.), O alcance dos Direitos Humanos nos Estados Lusófonos, 4.º Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, EDUNISC – Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul / RS, 2017, disponível em https:// issuu.com/comunicadireito/docs/e-book_lusofonia. O tema mereceu um novo olhar, não apenas pela premência da necessidade de uma (nova) alteração legislativa, nomeadamente no contexto dos crimes sexuais, mas porque, entretanto, no dia 21 de janeiro de 2019, foi publicado o relatório de avaliação do Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO) relativamente a Portugal.

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A vítima e a Convenção de Istambul: (novos) desafios para o ordenamento jurídico-penal português, em especial no contexto dos crimes sexuais Margarida Santos

Resumo: O presente texto centra-se nas implicações e desafios que a Convenção de Istambul promove no contexto da proteção da vítima (mulher). Em especial, analisam-se os alguns reflexos da Convenção de Istambul no ordenamento jurídico-penal português, em especial no que diz respeito aos crimes de violação e de coação sexual. Reflete-se sobre o sentido e alcance do caminho feito e aponta-se o caminho a percorrer no que diz respeito aos crimes sexuais, por ser um dos temas que merecerão labor do legislador substantivo. Especial consideração é realizada ao relatório de avaliação do Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO) relativamente a Portugal entregue no dia 21 de janeiro de 2019. Palavras-chave: Convenção de Istambul; proteção da vítima (mulher); implicações nos crimes sexuais; relatório de avaliação do GREVIO.

1. Considerações preliminares A Convenção de Istambul2 constitui um corpo legislativo fundamental na prevenção/repressão da violência contra as mulheres e proteção destas, traduzindo um “avanço ideológico e simbólico na teorização da violência contra as mulheres, ultrapassando-se a linguagem neutra em relação ao género”3. Neste contexto, o âmbito de aplicação da Convenção abrange todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo a violência doméstica (artigo 2.º da Convenção). A Convenção estabelece uma visão transversal da proteção da mulher contra a violência. Com efeito, a Convenção compreende diferentes âmbitos, abarcando, desde logo, as matérias da prevenção, proteção e apoio, direito civil

2 A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, designada por Convenção de Istambul, foi aprovada a 11 de maio de 2011, tendo sido ratificada por Portugal pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2013, de 21 de janeiro, e entrado em vigor a 1 de agosto de 2014. 3 Cf. Maria Clara Sottomayor, «A Convenção de Istambul e o Novo Paradigma da Violência de Género», Ex Æquo, n.º 31, 2015, pp.105 e ss.

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e penal, direito processual e medidas de proteção, migração e asilo, prevendo, igualmente, um mecanismo de monitorização4. Ao nível do direito material (artigos 29.º a 48.º da Convenção), sublinhe-se que a Convenção impõe aos Estados-partes, além da obrigação de adotar medidas que assegurem que os atos de violência aqui contemplados sejam tidos em conta nas decisões respeitantes ao direito de guarda, direito de visita das crianças e sua segurança (artigo 31.º da Convenção), a obrigação de criminalização dos atos de violência psicológica, física, sexual, perseguição, de casamento forçado, de mutilação genital feminina, aborto forçado e esterilização forçada e assédio sexual (artigos 33.º a 40.º), devendo existir “sanções efetivas, proporcionais e dissuasoras, tendo em conta a sua gravidade” (artigo 45.º, n.º 1). Importa, ainda, salientar que o Capítulo IX é dedicado à monitorização da aplicação da Convenção pelas Partes. Com efeito, o verdadeiro teste sobre a aplicação prática da Convenção reside nesta monitorização. Neste sentido, compete ao Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica do Conselho da Europa (GREVIO) monitorizar as medidas tomadas pelos Estados Partes para implementar a Convenção de Istambul (artigo 66.º da Convenção), podendo o Grupo adotar recomendações gerais sobre a aplicação da Convenção, com base nas suas constatações (artigo 69.º da Convenção). Tendo por base um questionário elaborado pelo GREVIO5, na esteira do artigo 68.º da Convenção, as partes terão de apresentar ao Secretário-Geral do Conselho da Europa um relatório sobre as medidas adotadas tendo em vista a efetivação das disposições da Convenção, para que o mesmo seja apreciado pelo

4 Para maiores considerações acerca da Convenção de Istambul ver os nossos: «Implicações da Convenção de Istambul para o ordenamento jurídico-penal português: algumas reflexões a propósito dos novos tipos legais de crime de mutilação genital feminina, casamento forçado e perseguição», in Igualdade de Género: Velhos e Novos Desafios, no prelo, 2019; «A Convenção de Istambul e a proteção das mulheres contra a violência: uma visão panorâmica», in Maria Elizabeth Rocha, Marli M. Moraes da Costa e Ricardo Hermany (org.), O alcance dos Direitos Humanos nos Estados Lusófonos, 4.º Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, EDUNISC – Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul / RS, 2017, disponível em https:// issuu.com/comunicadireito/docs/e-book_lusofonia; «A Convenção de Istambul e a “violência de género”»: breves apontamentos à luz do ordenamento jurídico-penal português”, Fides, v. 8, n.º 2, 16.ª edição, jul/dez., 2017, disponível em https://drive.google.com/file/d/1tHk0RwUFgz6iUrjRh8d_27hxJjnWH3ZR/view. 5 O questionário poderá ser consultado em http://www.coe.int/en/web/istanbul-convention/grevio (última consulta a 28-1-2019).

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A vítima e a Convenção de Istambul: (novos) desafios para o ordenamento jurídico-penal português, em especial no contexto dos crimes sexuais Margarida Santos

GREVIO6. De resto, foi já publicado, no dia 21 de janeiro de 2019, o relatório de avaliação do GREVIO relativo a Portugal, onde, cumpre já antecipar, se acentuam os esforços envidados no sentido da prevenção e repressão da violência doméstica e da promoção da igualdade entre homens e mulheres7. No dia 28 de janeiro foram publicadas as respetivas recomendações, apresentadas de acordo com o disposto no artigo 68.º, n.º 12 da Convenção 8. Neste documento sobressai, entre outras matérias, no que diz respeito ao Direito material, a necessidade de ser alterada a legislação portuguesa de forma a estar de acordo com o artigo 36.º da Convenção (Violência sexual, incluindo violação), com as disposições legais sobre circunstâncias agravantes (artigo 46.º da Convenção) e (aqui já inserido na matéria relativa à Investigação, ação penal, direito processual e medidas de proteção) com as normas relativas aos processos judiciais ex parte e ex officio (artigo 55.º da Convenção)9. Neste contexto, pretende-se dar conta de alguns dos reflexos da Convenção de Istambul na legislação penal portuguesa, sublinhando o caminho feito, atribuindo sentido e alcance às inovações legislativas advindas deste documento 6 Para além dos relatórios recebidos das Partes, o Grupo utilizará informação proveniente de ONG e da sociedade civil, bem como de instituições nacionais para a proteção dos direitos humanos, podendo deslocar-se aos Estados em questão a fim de recolher mais informação (cfr. artigo 68.º, da Convenção). O Relatório Português (Report submitted by Portugal pursuant to Article 68, paragraph 1 of the Council of Europe Convention on preventing and combating violence against women and domestic violence), foi recebido pelo GREVIO em 8 de setembro de 2017 e publicado em 8 de setembro de 2017, encontrando-se disponível em https://rm.coe.int/portugal-state-report/168074173e (última consulta a 3-10-2017). 7 Este relatório apresenta uma avaliação das medidas de implementação adotadas pelas autoridades portuguesas relativamente a todos os aspetos da Convenção de Istambul. O relatório, bem como um resumo executivo, podem ser consultados em https://www.coe.int/en/web/istanbul-convention/newsroom/-/asset_publisher/anlInZ5mw6yX/content/grevio-publishes-its-reports-on-portugal-and-swed-1?inheritRedirect=false&redirect=https%3A%2F%2Fwww. coe.int%2Fen%2Fweb%2Fistanbul-convention%2Fnewsroom%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_anlInZ5mw6yX%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D2. No resumo executivo do relatório pode ler-se: “O relatório sublinha o forte empenhamento demonstrado pelas autoridades portuguesas ao longo dos anos em combater a violência contra as mulheres, promovendo simultaneamente a igualdade entre mulheres e homens”. Não obstante, com muito interesse, adiante-se já que neste relatório (cfr. o sumário executivo, p. 4), se salienta que seria necessário, nomeadamente, “assegurar que o tratamento dos casos de violência contra as mulheres pelos serviços responsáveis pela aplicação da lei e pelos tribunais seja solidamente ancorado numa compreensão da violência contra as mulheres baseada no género e seja centrado na segurança e nos direitos humanos das mulheres e dos seus filhos, assim como evitar a utilização, no âmbito dos processos judiciais, de elementos sem valor de prova relativos aos antecedentes e comportamento sexuais da vítima”. 8 O documento pode ser consultado em https://rm.coe.int/ic-cp-inf-2019-3-eng/pdfa/168092019b. 9 Cfr. parágrafo 10, do documento relativo às Recomendações do GREVIO, disponível em https:// rm.coe.int/ic-cp-inf-2019-3-eng/pdfa/168092019b.

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internacional, e apontando (apenas a direção) do caminho a percorrer no que diz respeito aos crimes sexuais, por ser um dos temas que merecerão labor do legislador substantivo.

2. (Alguns) reflexos da Convenção de Istambul no ordenamento jurídico-penal português A Convenção de Istambul impulsionou relevantes alterações na legislação portuguesa, visando a adequação do ordenamento jurídico português àquela Convenção, embora nem sempre esta motivação seja referida expressamente, sendo de realçar que noutros casos as alterações já há muito que vinham sendo reclamadas pela academia e pelos práticos judiciários. Numa visão de conjunto, importa sublinhar que grande parte das obrigações decorrentes da Convenção já estavam incorporadas na legislação portuguesa. Especificamente no que concerne ao direito penal substantivo, foram publicadas, desde logo, as Leis n.º 83/2015, de 5 de agosto, e n.º 103/2015, de 24 de agosto (esta última não o refere explicitamente, mas podemos compreendê-la como inserida neste contexto10)11. Desde logo, para o que nos importa, a Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, em cumprimento do disposto na Convenção de Istambul, como expressamente se refere no sumário, autonomizou o crime de Mutilação genital feminina (artigo 144.º-A do CP), criou os crimes de Perseguição (artigo 154.º-A do CP) e Casamento forçado (artigo 154.º-B do CP), e alterou os crimes de Violação (artigo 164.º do CP), Coação sexual (artigo 163.º do CP) e Importunação sexual (artigo 170.º do CP). De referir, igualmente, que esta lei aditou o artigo 154.º-C, referente aos atos preparatórios do crime de casamento forçado12. Em jeito de síntese prévia, podemos já transparecer dois apontamentos críticos, sobretudo no que toca aos aspetos do direito penal substantivo: um de cariz positivo e um de cariz menos satisfatório. 10 Assim, ver também Cândido da Âgra (Coord.) et al, Homicídios conjugais: estudo avaliativo das decisões judiciais, Lisboa, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2015 p. 21, nota 5. 11 Para uma descrição destas principais alterações legislativas, ver o nosso «Implicações da Convenção de Istambul para o ordenamento jurídico-penal português: algumas reflexões a propósito dos novos tipos legais de crime de mutilação genital feminina, casamento forçado e perseguição», in Igualdade de Género: Velhos e Novos Desafios, no prelo, 2019. 12 Para uma descrição das principais alterações ocorridas no CP, ver o nosso «Implicações da Convenção de Istambul para o ordenamento jurídico-penal português: algumas reflexões a propósito dos novos tipos legais de crime de mutilação genital feminina, casamento forçado e perseguição», in Igualdade de Género: Velhos e Novos Desafios, no prelo, 2019.

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A vítima e a Convenção de Istambul: (novos) desafios para o ordenamento jurídico-penal português, em especial no contexto dos crimes sexuais Margarida Santos

No essencial, e encetando pela nota positiva, numa visão transversal e perfunctória, podemos dizer que as alterações legislativas asseguram grosso modo o cumprimento das obrigações assumidas pela ratificação da Convenção, ainda que existam soluções não isentas de dúvida, nomeadamente no que diz respeito à própria construção da norma incriminadora13. Ou seja, podemos afirmar, sem andarmos muito longe da verdade, que a garantia de criminalização do tipo legal de crime de perseguição, importunação sexual, casamento forçado, mutilação genital feminina se afigura, no essencial, cumprida (em grande medida já se afigurava cumprida). No entanto, uma nota crítica se impõe tecer a propósito dos crimes de coação sexual (artigo 163.º do CP) e de violação (artigo 164.º do CP) “… atendendo às subtilezas hermenêuticas da formulação legal, como seja a problemática do conceito de ‘consentimento’ para efeitos de preenchimento do tipo incriminador

13 Neste sentido, ver Teresa Pizarro Beleza, Frederico da Costa Pinto (Coord.), Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, adotada em Istambul a 11 de maio de 2011: reflexos no ordenamento jurídico português, Lisboa, CEDIS, 2017, disponível em http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/04/Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Istambul-04.04.2017.pdf, p. 5. Para um levantamento das iniciativas legislativas (e doutrinárias) e pareceres prévios às alterações legislativas, ver a última obra citada. Para uma reflexão em torno dos princípios e sentido da Convenção de Istambul e a realidade portuguesa, ver também a obra Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Coord.), Combate à violência de género – da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 2016. Para uma análise sistemática dos novos tipos legais e das alterações operadas em determinadas incriminações, ver André Lamas Leite, «As alterações de 2015 ao Código Penal em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais – nótulas esparsas», Julgar, n.º 28, 2016, a propósito do crime de coação sexual, do crime de violação, do crime de importunação sexual, abuso sexual de crianças, de menores dependentes e atos sexuais com adolescentes, recurso à prostituição e lenocínio de menores, pornografia de menores e seu aliciamento para fins sexuais, mutilação genital feminina e sobre o registo e acesso a bases de dados por comissão de delitos sexuais contra menores, pp. 61 e ss. Especificamente sobre o crime de mutilação genital, perseguição e casamento forçado, ver Mário Ferreira Monte, «Mutilação genital, perseguição (stalking) e casamento forçado: novos tempos, novos crimes… comentários à margem da Lei 83/2015, de 5 de agosto», Julgar, n.º 28, 2016, pp. 75 e ss. Do mesmo Autor ver, ainda, «O resgate político-penal da vítima (mulher) em matéria de direitos humanos – considerações em torno da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, e da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto», in Patrícia Jerónimo (org.), Temas de investigação em direitos humanos para o século XXI – edição comemorativa do 10.º Aniversário do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Minho, Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016, especialmente pp. 278 e ss. Para uma análise das alterações aos crimes de coação sexual e violação, ver Teresa Pizarro Beleza, Frederico da Costa Pinto (Coord.), Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, adotada em Istambul a 11 de maio de 2011: reflexos no ordenamento jurídico português, Lisboa, CEDIS, 2017, disponível em http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/04/Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Istambul-04.04.2017. pdf, pp 63 – 67.

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e a valoração das formas típicas de constrangimento …”14. Na verdade, poderia o legislador ter aproveitado a oportunidade para clarificar a questão controversa existente em torno da interpretação do conceito de “consentimento” para efeitos de preenchimento do tipo, de forma a melhor ir ao encontro do espírito da Convenção de Istambul (e das injunções constantes do artigo 36.º - Violência sexual, incluindo violação)15. É sobre estes dois pontos que nos iremos centrar.

3. O sentido e o alcance dos “novos” tipos legais: a mutilação genital feminina, o casamento forçado e a perseguição Importa agora tecer umas breves considerações, de conjunto, relativamente aos três “novos” tipos legais: Mutilação genital feminina – artigo 144.º do CP; Casamento forçado – artigo 154.º-B do CP e Perseguição – artigo 154.º-A do CP, refletindo sobretudo sobre a necessidade de criação de novos tipos legais. Assim, especificamente no que diz respeito aos novos tipos legais de crime, podemos dizer, como apreende Mário Monte, que se assistiu a “… uma autonomização de situações de tipos legais de crime que de algum modo poderiam já tutelar os interesses protegidos”16. Ora, poder-se-ia apontar que estes novos tipos legais de crime representam o caminho para um «Direito Penal simbólico», na medida em que as novas incriminações típicas poderão não proteger, no essencial, novos bens jurídicos17. Não cremos que seja exatamente assim. Estamos, pois, com aqueles que entendem que existem considerações relacionadas com o bem jurídico e com as

14 Neste sentido, ver Teresa Pizarro Beleza, Frederico da Costa Pinto (Coord.), Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, adotada em Istambul a 11 de maio de 2011: reflexos no ordenamento jurídico português, Lisboa, CEDIS, 2017, disponível em http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/04/ Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Istambul-04.04.2017.pdf, p. 5. 15 Ver o nosso «Convenção de Istambul, crimes sexuais e consentimento: breves apontamentos», in Margarida Santos/Helena Grangeia (coord.), Novos desafios em torno da proteção da vítima: uma perspetiva multidisciplinar, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/ Escola de Direito da Universidade do Minho, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/ publicacoes/novos-desafios-em-torno-da-protecao-da-vitima-uma-perspetiva-multidisciplinar/. 16 Mário Ferreira Monte, “Mutilação genital, perseguição (stalking) e casamento forçado: novos tempos, novos crimes… comentários à margem da Lei 83/2015, de 5 de agosto”, Julgar, n.º 28, 2016, p. 83. 17 Especificamente sobre o crime de mutilação genital feminina, ver já André Lamas Leite, “As alterações de 2015 ao Código Penal em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais – nótulas esparsas”, Julgar, n.º 28, 2016, p. 63.

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A vítima e a Convenção de Istambul: (novos) desafios para o ordenamento jurídico-penal português, em especial no contexto dos crimes sexuais Margarida Santos

exigências de prevenção, nomeadamente de prevenção geral, que justificam esta opção legislativa18. Assim, especificamente no que diz respeito aos novos tipos legais de crime (Mutilação genital feminina – artigo 144.º do CP; Casamento forçado – artigo 154.º-B do CP e Perseguição – artigo 154.º-A do CP), podemos concluir que existem considerações relacionadas com o bem jurídico e com a prevenção, nomeadamente a prevenção geral, que justificam a opção legislativa portuguesa de tipificar autonomamente. Com efeito, pode afirmar-se que claramente nestes casos, apesar de algumas questões que se poderão suscitar, o legislador nacional absorveu o espírito da Convenção de Istambul19. Em síntese apertada, podemos afirmar que as condutas aqui elencadas, por força de outros tipos legais, já caíam, em grande medida, sob a alçada da lei penal. Não obstante, cremos que se assiste a um reforço da tutela penal neste âmbito, por diversas vias, observando-se uma mais consistente proteção da vítima, contribuindo para um aumento da tutela jurídico-penal. Além de se sublinhar que estarão aqui em causa razões de prevenção geral e especial, concordamos com Mário Monte quando sintetiza que, no que se diz respeito especificamente ao ordenamento jurídico português, “… as novas incriminações típicas têm um significado e um simbolismo claramente assumido na direção da proteção da vítima, em especial, da mulher”, “… como sujeito igual, por um lado, mas necessitado de um olhar diferente, por outro lado, a merecer

18 Cf. Mário Ferreira Monte, “Mutilação genital, perseguição (stalking) e casamento forçado: novos tempos, novos crimes… comentários à margem da Lei 83/2015, de 5 de agosto”, Julgar, n.º 28, 2016, p. 83. Nas palavras do Autor, pode entender-se que “… o legislador pretendeu nestas três situações chamar a atenção para estes fenómenos e de sobre eles lançar um maior efeito dissuasor, o que fez, por um lado, autonomizando estas condutas, para que se não diluíssem num tipo mais aberto e vago, e para, de outro modo, poder, em seguida, aumentar a censura jurídico-penal nestas situações”. Ver, em sentido semelhante, sobretudo no que diz respeito à mutilação genital feminina, Paula Ribeiro de Faria, «A Convenção de Istambul e a mutilação genital feminina», in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016 e Maria Clara Sottomayor, “Assédio sexual nas ruas e no trabalho: uma questão de direitos humanos”, in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016. 19 Para maiores desenvolvimentos ver o nosso «Convenção de Istambul, crimes sexuais e consentimento: breves apontamentos», in Margarida Santos/Helena Grangeia (coord.), Novos desafios em torno da proteção da vítima: uma perspetiva multidisciplinar, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/novos-desafios-em-torno-da-protecao-da-vitima-uma-perspetiva-multidisciplinar/.

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uma maior discriminação positiva, no sentido da sua efetiva proteção jurídico-penal” 20. Assim, vislumbra-se uma alteração de paradigma, que olha para a vítima (mulher) como alguém carente de proteção. E, nesta medida, concordamos com a expressão feliz de Mário Monte quando apreende a existência de um “resgate jurídico-penal da vítima, em particular da mulher” 21.

4. Os crimes de coação sexual (artigo 163.º do CP) e de violação (artigo 164.º do CP) e a (in)compatibilidade com a Convenção de Istambul No âmbito dos crimes de coação sexual (artigo 163.º do CP) e de violação (artigo 164.º do CP), tem sido objeto de discussão a questão do conceito de “consentimento” para efeitos de preenchimento do tipo incriminador. Com efeito, uma das questões mais controversas no âmbito dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual prende-se, desde logo, com a questão de saber se os comportamentos subjacentes à coação sexual/violação pressupõem uma forma típica de constrangimento para a sua prática e se este constrangimento significa violência ou se basta a falta de consentimento. Noutras palavras, num enquadramento mais amplo da questão, é o dissentimento/não consentimento suficiente para se considerarem preenchidos os meios típicos de constrangimento? Especificamente no que tange à violência sexual, o n.º 1, do artigo 36.º da Convenção de Istambul (Violência sexual, incluindo violação), estatui que: “1. [a] s Partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem intencionalmente: a) Praticar a penetração vaginal, anal ou oral, de natureza sexual, de quaisquer partes do corpo ou objetos no corpo de outra pessoa, sem consentimento desta última; b) Praticar outros atos de natureza sexual não consentidos com uma pessoa; c) Levar outra pessoa a praticar atos de natureza sexual não consentidos com terceiro», esclarecendo-se no n.º 2 que «[o] consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes” (itálico nosso). 20 Mário Ferreira Monte, «O resgate político-penal da vítima (mulher) em matéria de direitos humanos – considerações em torno da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, e da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto», in Patrícia Jerónimo (org.), Temas de investigação em direitos humanos para o século XXI – edição comemorativa do 10.º Aniversário do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Minho, Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar/Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016, pp. 283 e 284. 21 Idem, pp. 277 e 278.

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Neste âmbito, parece poder extrair-se das injunções da versão possível do artigo 36.º da Convenção da Convenção que a prática de atos sexuais sem consentimento deve ser punível. É certo que, analisando-se por exemplo o Relatório Explicativo da Convenção de Istambul, aí se refere, fazendo alusão à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que há ordenamentos jurídicos que pressupõem a interpretação de conceitos como «coerção», «violência», «coação», «ameaça», «estratagema», «surpresa» no contexto de atos sexuais não consentidos, o que implica uma valoração («sensível») da prova que atenda às particulares especificidades do caso, apurando se a vítima deu o seu consentimento livre. Ora, os legisladores da Convenção embora deixem às Partes a elaboração da arquitetura legal que considerem adequada, nomeadamente no que concerne aos fatores impeditivos de um consentimento livre, sublinham que esta avaliação deve ser suficientemente ampla e aberta de forma a abranger as possíveis reações da vítima, e não apenas as baseadas em presunções de comportamentos típicos. Numa palavra, parece poder extrair-se desta disposição que se o legislador nacional optar pela utilização de conceitos como o de «constrangimento» deve o mesmo ser entendido de forma ampla, de forma a abranger que os atos sexuais não consentidos devem estar cobertos pelo manto penal. A maior parte dos países europeus não reconhece a falta de consentimento para efeitos de preenchimento do tipo legal de violação22. Visando a adequação do ordenamento jurídico português à Convenção de Istambul entre outra legislação relevante e entre outras importantes alterações e inovações, a Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, veio promover modificações nos crimes de coação sexual e de violação (embora já tenho sido manifestada pelo Governo a intenção de alteração do CP “no tocante aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, à luz da Convenção de Istambul e das recomendações do GREVIO”23. Esta problemática tem igualmente dividido a doutrina e a jurisprudência portuguesas.

22 Amnistia Internacional, “Notícias: Sexo sem consentimento é violação mas só nove países europeus o reconhecem na lei”, 5 de maio de 2018, disponível em https://www.amnistia.pt/sexo-sem-consentimento-e-violacao-mas-apenas-nove-paises-europeus-o-reconhecem-na-lei/ (última consulta a 12-1-2019). 23 “Governo vai alterar legislação sobre crimes sexuais”, notícia publicada no Público, no dia 4 de outubro de 2018, disponível em https://www.publico.pt/2018/10/04/sociedade/noticia/governo-quer-alterar-leis-sobre-crimes-sexuais-1846186 (última consulta a 15-3-2019).

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Numa conceção mais restritiva, seguida por alguma jurisprudência24 e doutrina25, exige-se que para além da falta de consentimento exista força física do agente, ou seja, interpreta-se o conceito legal de violência de forma restritiva. De acordo com uma tese ampla, seguida por parte da jurisprudência e doutrina26, basta uma ausência de consentimento para o preenchimento do tipo, onde o elemento objetivo do tipo estaria preenchido, desde logo, com a ausência de vontade, não sendo necessário o uso de violência adicional. Com a Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, o legislador português alterou o crime de coação sexual e violação, modicando o n.º 2 dos artigos 163.º e 164.º. Na esteira do artigo 163, n.ºs 1 e 2, do CP (Coação sexual): “1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos”. De acordo com o artigo 164.º, n.º 1, do CP (Violação): “1 - Quem, por meio de vio24 Ver, por exemplo, o Acórdão de 13/4/2011 (processo n.º 476/09.0PBBGC.P1) onde no sumário pode ler-se, paradigmaticamente, que “I - O crime de Violação, previsto no artigo 164.º, n.º 1, do CP, é um crime de execução vinculada, i.é., tem de ser cometido por meio de violência, ameaça grave ou acto que coloque a vítima em estado de inconsciência ou de impossibilidade de resistir. II – O agente só comete o crime se, na concretização da execução do acto sexual, ainda que tentado, se debater com a pessoa da vítima, de forma a poder-se falar em “violência”. III – A força física destinada a vencer a resistência da vítima pressupõe que esta manifeste de forma positiva, inequívoca e relevante a sua oposição à prática do acto. IV – A recusa meramente verbal ou a ausência de vontade, de adesão ou de consentimento da ofendida são, por si só, insuficientes para se julgar verificado o crime de Violação”. 25 Ver, por exemplo, Jorge de Figueiredo Dias, «Comentário ao art.º 163.º», in Jorge de Figueiredo Dias (Dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012. 26 Ver, entre outros, Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Do Dissentimento à falta de capacidade para consentir”, in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Coord.), Combate à violência de género – da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 2016 e da mesma Autora, «Conceito de violência no crime de violação», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 3, Julho-Setembro de 2011, Coimbra Editora; Maria Clara Sottomayor, «Assédio sexual nas ruas e no trabalho: uma questão de direitos humanos», in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016 e da mesma Autora, «O conceito legal de violação: um contributo para a doutrina penalista. A propósito do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Abril de 2011», Revista do Ministério Público, nº 128, Out.-Dez, 2011 e Teresa Pizarro Beleza, «”Consent – It´s as simple as tea”: notas sobre a relevância do dissentimento nos crimes sexuais, em especial na violação», in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.ª), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016 e da mesma Autora, «A violência das coisas», disponível em http://www.fd.unl.pt/anexos/4199.pdf (última consulta a 15-11-2018).

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lência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos”. Nesta medida, verifica-se um alargamento da incriminação a outras modalidades de comportamento, sendo que estes crimes (do n.º 2), antes específicos, passaram a ser comuns. Assistiu-se igualmente a uma elevação das molduras legais. Podemos já adiantar que embora o legislador tenha procedido a uma dissipação de algumas das dúvidas de interpretação existentes, alargando, desde logo, o âmbito de incidência dos tipos incriminadores, entendemos, no entanto, que a letra da lei revela-se ambígua, deixando questões em aberto, desde logo, no que toca à interpretação do conceito de «constrangimento», que pode ser compreendido com recurso à «força», a um «estratagema», cabendo depois à prática judiciária a interpretação (adequada). Ora, seguindo a orientação dos legisladores da Convenção de Istambul, esta avaliação casuística deve assentar num entendimento suficientemente amplo de forma a abranger (todas!) as possíveis reações da vítima27. Nesta medida, cremos que o espírito e as injunções constantes no artigo 36.º da Convenção de Istambul, na linha do entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, poderiam ter levado o legislador nacional a uma maior clarificação, no sentido de que fosse suficiente a ausência de consentimento para o preenchimento do tipo, ou seja para o acolhimento de uma tese ampla. Assim se implementaria uma interpretação adequada (e uniforme?) na prática judiciária, que ia ao encontro de uma consistente proteção do bem jurídico protegido. Com efeito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado que o uso ou ameaça de uso de violência não são elementos constitutivos do crime de violação, mas sim o não consentimento, que não tem de ser expresso por resistência física, bastando palavras ou gestos28. Entre outros instrumentos, a Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa Rec (2002) interpela à criminalização de “qualquer ato de caráter sexual cometido contra uma pessoa sem o seu consentimento, mesmo que esta não dê sinais de resistência”.

27 Cfr. o Relatório Explicativo da Convenção de Istambul, no que concerne ao artigo 36.º. 28 Ver o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem M.C. v. Bulgária, de 4/12/2003.

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Na verdade, cremos que a formulação legal, nomeadamente a utilização do conceito de constrangimento (que pode ser entendido com recurso à força), como nitidamente adverte Maria Clara Sottomayor, “não exprime com clareza a orientação da Convenção de Istambul, segundo a qual todos os atos sexuais não consentidos devem estar abrangidos pela norma penal”29. Da mesma forma Teresa Beleza refere que a atual formulação legal “… sugere que a verdadeira violação é a conseguida por meio de violação ou ameaça. Se outra forma de constrangimento tiver lugar, tratar-se-á de um caso atenuado, mas ainda assim será necessário demonstrar que houve constrangimento”30. E acrescenta: “Se isto significa “contra vontade” (‘sem consentimento’ é a expressão usada na lei na definição de violação de domicílio), então o avanço é muito significativo”. Não obstante, deixa a Autora transparecer que eventualmente pode a jurisprudência seguir o entendimento de que não se afigura suficiente a prova da falta de vontade da vítima “…dada a imagem ainda dominante de «verdadeira violação» (…) como um ato de violência «acrescida» praticado por um estranho numa rua escura com resistência física ativa e intensa da vítima” 31. Há quem entenda, no entanto, como Conceição Cunha32, que o legislador procedeu a uma «clarificação revolucionária», não tendo esta clarificação ficado «por uma via mezzo», entendendo que no n.º 2 dos artigos 163.º e 164.º do CP estão incluídos “os casos de dissentimento/não consentimento e os casos de ‘consentimento’ não livre, mas viciado por pressões que não atinjam o grau de ‘ameaça grave’”. Maria Clara Sottomayor33 subscreve confessadamente esta interpretação, entendendo ser como a mais consentânea com a Constituição (artigos 25.º e 26.º) e com a Convenção de Istambul (artigo 36.º) e a que vai de encontro à

29 Maria Clara Sottomayor, “Assédio sexual nas ruas e no trabalho: uma questão de direitos humanos”, in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, p. 80. 30 Teresa Pizarro Beleza, « “Consent – It´s as simple as tea”: notas sobre a relevância do dissentimento nos crimes sexuais, em especial na violação», in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, pp. 24/25. 31 Idem, ibidem. 32 Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Do Dissentimento à falta de capacidade para consentir”, in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Coord.), Combate à violência de género – da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 2016, p. 163. 33 Maria Clara Sottomayor, «Assédio sexual nas ruas e no trabalho: uma questão de direitos humanos», in Maria da Conceição Ferreira da Cunha (Org.), Combate à Violência de Género. Da Convenção de Istambul à Nova Legislação Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, p. 80.

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melhor tutela dos bens jurídicos em causa. Alerta, no entanto, para «o risco» de não ser a posição seguida pela praxis judiciária. Com efeito, não parece que o legislador português tenha seguido este caminho pois se assim fosse, como sintetizam Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto, “não necessitaria [o legislador] de criar um número autónomo a dispensar a violência física, porquanto tais situações estariam já integradas nos números 1 dos artigos”34. Neste sentido, “parece que o legislador mantém todas as exigências para o preenchimento da modalidade do crime estabelecida no número 1, oferecendo uma válvula de segurança ao aplicador do direito no número 2, para o caso de ele adotar uma conceção restritiva que o impeça de incluir no número 1 as situações que hoje se podem expressamente subsumir no número 2”35. Para que a lei portuguesa fosse mais clara, e assim evitando dúvidas desde logo na jurisprudência, para uma efetiva proteção da liberdade sexual seria, pois, preferível que o legislador tivesse utilizado uma formulação legal mais clara no sentido de ser suficiente o não consentimento para que esteja preenchido o crime de coação/violação. Uma solução poderia ser, por exemplo, a sugerida pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, de acordo com a qual eram abrangidas as situações de ausência de consentimento livre e expresso36. Neste sentido vai Maria Clara Sottomayor37. Também a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) “…considera (…) premente clarificar na lei penal que o não consentimento não depende da manifestação de resistência física por parte da vítima, para assim combater a desproteção na prática atualmente existente. (…) tornar claro que o não consentimento basta para a verificação do crime, passando o exercício de violência,

34 Teresa Pizarro Beleza, Frederico da Costa Pinto (Coord.), Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, adotada em Istambul a 11 de maio de 2011: reflexos no ordenamento jurídico português, Lisboa, CEDIS, 2017, disponível em http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/04/Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Istambul-04.04.2017.pdf, p. 63. 35 Idem, ibidem. 36 “Quem sem o consentimento livre e expresso de outra pessoa…” – quer para a violação, quer para a coação sexual – cf. Parecer da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas sobre os Projetos de Lei nºs 661/XII, 664/XII e 665/XII, disponível em https://www.apmj.pt/images/PDF/ pareceres/Violacao_%20Coacao_e_Assedio.pdf (última consulta a 15-11-2018). 37 Maria Clara Sottomayor, «A situação das mulheres e das crianças 25 anos após a reforma de 1977», in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Volume I, Direito da família e das Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 154 e155.

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ameaça grave ou utilização de meios para conduzir a estado inconsciente ou de impossibilidade de resistir a constituir formas de agravação da pena”38. Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto entendem que seria preferível que o crime não tivesse formas de execução típicas, em vez de se fazer coincidir a noção de violência com a ausência de consentimento39. Assim, propugnam que “uma correta valoração jurídico-constitucional determina que basta o dissentimento para a prática de ato sexual de relevo para que se preencha o tipo incriminador de coação sexual ou violação” 40. Ou seja, “… o tipo deve estar preenchido sempre que sejam praticados atos sexuais de relevo contra a vontade da vítima, traduzidos no seu constrangimento com ou sem meios típicos” 41. De resto, se dúvidas pudessem existir sobre a inadequação (desde logo pela dúvidas de interpretação que gera) da arquitetura destes normativos legais com a Convenção de Istambul, foram as mesmas dissipadas com a publicação, no dia 21 de janeiro de 2019, do relatório do GREVIO relativo a Portugal42 e das respetivas recomendações, apresentadas de acordo com o disposto no artigo 38 Cf. Parecer da APAV sobre as implicações legislativas da Convenção de Istambul do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, disponível em http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Parecer_da_APAV_relativo_as_implicacoes_ legislativas_da_Convencao_de_Istambul.pdf (última consulta a 15-11-2017), p. 11 e ss. 39 Cf. Teresa Pizarro Beleza, Frederico da Costa Pinto (Coord.), Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, adotada em Istambul a 11 de maio de 2011: reflexos no ordenamento jurídico português, Lisboa, CEDIS, 2017, disponível em http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/04/Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Istambul-04.04.2017.pdf, p. 65. 40 Idem, ibidem. 41 Idem, ibidem. 42 Este relatório apresenta uma avaliação das medidas de implementação adotadas pelas autoridades portuguesas relativamente a todos os aspetos da Convenção de Istambul. O relatório, bem como um resumo executivo, podem ser consultados em https://www.coe.int/en/web/istanbul-convention/newsroom/-/asset_publisher/anlInZ5mw6yX/content/grevio-publishes-its-reports-on-portugal-and-swed-1?inheritRedirect=false&redirect=https%3A%2F%2Fwww. coe.int%2Fen%2Fweb%2Fistanbul-convention%2Fnewsroom%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_anlInZ5mw6yX%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D2. No resumo executivo do relatório pode ler-se: “O relatório sublinha o forte empenhamento demonstrado pelas autoridades portuguesas ao longo dos anos em combater a violência contra as mulheres, promovendo simultaneamente a igualdade entre mulheres e homens”. Não obstante, com muito interesse, adiante-se já que neste relatório (cfr. o sumário executivo, p. 4), se salienta que seria necessário, nomeadamente, “assegurar que o tratamento dos casos de violência contra as mulheres pelos serviços responsáveis pela aplicação da lei e pelos tribunais seja solidamente ancorado numa compreensão da violência contra as mulheres baseada no género e seja centrado na segurança e nos direitos humanos das mulheres e dos seus filhos, assim como evitar a utilização, no âmbito dos processos judiciais, de elementos sem valor de prova relativos aos antecedentes e comportamento sexuais da vítima”.

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68, n.º 12 da Convenção, no dia 28 de janeiro de 2019 43, onde se recomenda44, entre outras medidas, a alteração da legislação portuguesa de forma a estar de acordo com o artigo 36.º da Convenção (Violência sexual, incluindo violação), e com as normas relativas aos processos judiciais ex parte e ex officio (artigo 55.º da Convenção)45. Com efeito, no Relatório de avaliação do GREVIO alerta-se para o facto de tipos legais dos artigos 163.º e 164.º do CP não assentarem na ausência de consentimento da vítima. Salienta-se que, embora com a revisão do Código Penal operada em 2015, o n.º 2 de ambos os artigos tenha sido alterado para incluir a conduta de coação sexual e violação cometida “por qualquer outro meio não previsto no número anterior”, com o objetivo de compatibilização do CP português com o artigo 36.º da Convenção, o certo é que o GREVIO analisa “que essas mudanças legislativas não eliminaram definitivamente a exigência do uso da força, uma vez que, nos parágrafos 2 dos artigos 163 e 164 do CP, a conduta ofensiva é qualificada pelo uso do verbo ‘constranger’”. 46. Nesta medida, entende-se que a formulação legal “não é suficiente para romper definitivamente com a prática de longa data dos tribunais portugueses de exigir a prova da resistência da vítima …”47. Em sequência, o GREVIO “insta as autoridades portuguesas a: a. alterar[em] a sua legislação penal em matéria de crimes sexuais, a fim de assegu-

43 O documento pode ser consultado em https://rm.coe.int/ic-cp-inf-2019-3-eng/pdfa/168092019b. 44 Solicitando-se que, até 30 de janeiro de 2022, seja apresentado um relatório ao Comité das Partes sobre as medidas adotadas para melhorar a implementação da Convenção nas áreas mencionadas – cfr. ponto B, do documento relativo às Recomendações do GREVIO, disponível em https:// rm.coe.int/ic-cp-inf-2019-3-eng/pdfa/168092019b. 45 Cfr. parágrafo 10, do documento relativo às Recomendações do GREVIO, disponível em https:// rm.coe.int/ic-cp-inf-2019-3-eng/pdfa/168092019b. 46 Cfr. parágrafo 173 do relatório, disponível em https://www.coe.int/en/web/istanbul-convention/newsroom/-/asset_publisher/anlInZ5mw6yX/content/grevio-publishes-its-reports-on-portugal-and-swed-1?inheritRedirect=false&redirect=https%3A%2F%2Fwww.coe. int%2Fen%2Fweb%2Fistanbul-convention%2Fnewsroom%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_anlInZ5mw6yX%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D2. 47 Cfr. parágrafo 173 do relatório, disponível em https://www.coe.int/en/web/istanbul-convention/newsroom/-/asset_publisher/anlInZ5mw6yX/content/grevio-publishes-its-reports-on-portugal-and-swed-1?inheritRedirect=false&redirect=https%3A%2F%2Fwww.coe. int%2Fen%2Fweb%2Fistanbul-convention%2Fnewsroom%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_anlInZ5mw6yX%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D2.

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rar que tais ofensas são baseadas na ausência do livre consentimento da vítima (…)”48.

5. Considerações finais De forma a compatibilizar a legislação penal portuguesa com a Convenção de Istambul, entre outras alterações legislativas, autonomizaram-se/criaram-se «novos» tipos legais de crime (Mutilação genital feminina – artigo 144.º do CP; Casamento forçado – artigo 154.º-B do CP e Perseguição – artigo 154.º-A do CP), em 2015. Com efeito, pode afirmar-se que claramente nestes casos, apesar de algumas questões que se poderão suscitar, o legislador nacional absorveu o espírito da Convenção de Istambul e promoveu uma mais consistente proteção da vítima, contribuindo para um fortalecimento da tutela jurídico-penal. Ademais, em 2015, o legislador português alterou também o crime de coação sexual e violação, modicando o n.º 2 dos artigos 163.º e 164.º. Nesta medida, verifica-se um alargamento da incriminação a outras modalidades de comportamento, sendo que estes crimes (do n.º 2), antes específicos, passaram a ser comuns. Embora o legislador tenha procedido a uma redução de algumas das incertezas de interpretação existentes, alargando, desde logo, o âmbito de incidência dos tipos incriminadores, a letra da lei revela-se ambígua, deixando dúvidas, desde logo, no âmbito da interpretação do conceito de «constrangimento», que pode ser compreendido de diferentes formas e amplitudes, dando azo a interpretações oscilantes na prática judiciária. Houve uma contenção legislativa que não dissipou as dúvidas e não agarrou com consistência o espírito da Convenção de Istambul. Nesta medida, além de outros motivos sublinhados no relatório de avaliação do GREVIO publicado em 21 de janeiro de 2019, também por causa dos «crimes sexuais» o CP voltará ao estaleiro jurídico, de forma a ser assegurado, de forma clara, que a violação e a coação sexual podem assentar na ausência do livre consentimento da vítima.

48 Bem como “b. [a] rever a definição do crime de assédio sexual no artigo 170.º do Código Penal Português, com vista a alinhá-lo com os requisitos do artigo 40 da Convenção de Istambul” (parágrafo 175) – sobre este ponto b) ver o parágrafo 173 do relatório disponível em https://www.coe.int/en/web/istanbul-convention/newsroom/-/asset_publisher/anlInZ5mw6yX/ content/grevio-publishes-its-reports-on-portugal-and-swed-1?inheritRedirect=false&redirect=https%3A%2F%2Fwww.coe.int%2Fen%2Fweb%2Fistanbul-convention%2Fnewsroom%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_anlInZ5mw6yX%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-1%26p_p_col_count%3D2.

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E-HEALTH: DESAFIOS E PROBLEMAS DA TELEMEDICINA Sónia Moreira Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho Investigadora do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação

Resumo: O presente trabalho, após uma breve introdução ao conceito de telemedicina, às suas vantagens e perigos, visa refletir sobre os desafios e os problemas que esta levanta, nomeadamente no que toca à sua (falta de) regulamentação e à determinação da lei aplicável e do foro competente nos casos transfronteiriços, colocando ainda, algumas questões em sede de responsabilidade civil médica. Palavras-chave: Telemedicina; lei aplicável; foro competente; responsabilidade civil médica.

1. Breve introdução aos conceitos de E-Health e telemedicina Já todos nós ou vários de nós, a certa altura, contactamos o nosso médico assistente ou o pediatra dos nossos filhos por telefone. Uma coisa tão simples como comunicar-lhe que a febre da criança não baixou, perguntando que medidas devemos tomar em seguida; ou simplesmente para esclarecermos dúvidas sobre a tomada de um medicamento ou para darmos conta de que determinado problema se voltou a repetir. Por vezes, fazêmo-lo através de sms ou de e-mail. Na verdade, já me sucedeu enviar por e-mail a uma médica especialista os resul77


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tados de análises clínicas prescritas em consulta presencial, tendo esta enviado a respectiva prescrição médica em resposta, igualmente por e-mail. Esta extensão do atendimento médico presencial para um atendimento subsequente à distância não é incomum e, nos dias de hoje, pode ser um complemento muito útil. Da óptica do paciente – que, potencialmente, somos todos nós – é muito reconfortante saber que o nosso médico pode estar à distância de uma chamada telefónica ou de um clique, principalmente em situações de urgência. Contudo, quando se fala de atendimento médico à distância, há ainda muitas outras realidades a considerar: veja-se o caso do médico das urgências no Hospital, que, ao proceder ao diagnóstico, tem dúvidas e decide telefonar a um colega especialista, a quem pede auxílio (também já me aconteceu, sendo certo que o médico das Urgências enviou ao colega uma fotografia da lesão pelo telemóvel, tendo, obviamente, pedido consentimento, previamente, para o fazer); vejam-se os casos de teleconsultas já existentes no Serviço Nacional de Saúde, em que os médicos pedem segundas opiniões a outros médicos1; veja-se o caso das linhas telefónicas de apoio aos doentes, como a Linha Saúde 24; ou o atendimento médico já proporcionado a pacientes por algumas Seguradoras, no âmbito de Seguros de Saúde, por telefone ou video-conferência através de Apps de dispositivos móveis. A todas estas situações, podemos, ainda (!), adicionar os casos (já não tão) futuristas de intervenções cirúrgicas médicas à distância, em que o médico opera um paciente através de braços mecânicos controlados remotamente, assistido por uma equipa presencial; ou os casos em que o pós-operatório é feito em casa, estando o paciente monitorizado através de aparelhos que enviam os dados clínicos para o Hospital ou clínica, havendo até alguns que administram medicação conforme os dados recolhidos.

1 Para consulta de dados do portal do SNS, relativamente à realização de consultas em telemedicina, v. https://transparencia.sns.gov.pt/explore/dataset/consultas-em-telemedicina/table/?sort=tempo&disjunctive.instituicao&disjunctive.regiao. Sobre a implementação da telemedicina em Portugal, v. Rosa Matos/Rui Santana/ Rita Veloso Mendes/ Ana Patrícia Marques/Ricardo Mestre, Telemedicina em Portugal: onde estamos?, Fundação Calouste Gulbenkian, Universidade Nova de Lisboa, 2014, pp. 25 e ss.

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Em suma, estamos perante casos da chamada E-Health2 ou telemedicina3. A primeira referência que se tem de um acto médico praticado à distância é a de um médico holandês, no início do século XX, que efectuou o primeiro electrocardiograma a um paciente que se encontrava num hospital a 1,5 km de distância. Na década de 20, há relatos de consultas médicas realizadas a marinheiros noruegueses através de rádio. Mas a moderna telemedicina terá surgido nos anos 60 do século XX com o programa espacial norte-americano, tendo a NASA desenvolvido formas de monitorizar os sinais vitais dos astronautas e de lhes prestar cuidados de saúde à distância4. Desde então, muito evoluiu e, hoje, a telemedicina é já uma realidade do nosso quotidiano. A telemedicina pode assumir várias modalidades, como a telemonitorização (a monitorização de sinais vitais do paciente à distância, muitas vezes através de sistemas portáteis), a teleformação (disponibilização de informação médica em sites acessíveis ao público ou a profissionais de saúde), a teleintervenção ou telecirurgia (intervenções cirúrgicas praticadas à distância, através de meios mecânicos, robóticos, etc.), a teleconsulta (conversação em tempo real entre o médico e o paciente através de videoconferência, telefone ou chat; a teleconsulta também pode referir-se à consulta de outros profissionais de saúde por parte do médico)5, o telediagnóstico (o médico da especialidade recebe à distância as imagens médicas ou os resultados das análises e elabora o respectivo relatório, devolvendo-o à origem), a tele-emergência (prestação de cuidados de saúde à distância em situações de emergência médica)6. Podemos, assim, definir a telemedicina como a modalidade de prestação de actos médicos 2 Segundo Alexandre Dias Pereira, o conceito de E-Health é mais abrangente do que o de telemedicina: esta “consiste na prestação de serviços de saúde por meio de tecnologias da informação e da comunicação, em que o profissional de saúde e o paciente não estão presentes fisicamente no mesmo local”, enquanto a E-Health abrange, ainda, “outros serviços, como os portais de informação de saúde, as farmácia online, as bases de dados eletrónicas e a prescrição e transmissão eletrónica de receitas médicas.” V. Alexandre Libório Dias Pereira, «Telemedicina e farmácia online: aspetos jurídicos da eHealth», in João Loureiro/André Dias Pereira/Carla Barbosa (coord.), Direito da Saúde – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Vol. 5, Saúde e Direito: Entre a Tradição e a Novidade, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 229 e 230. 3 Segundo Vera Lúcio Raposo, “o adjectivo «tele» pretende precisamente expressar a distância que separa o paciente do médico ou (os vários médicos que participam conjuntamente num determinado ato médico”. Vera Lúcio Raposo, «“Você tem uma nova mensagem”: a prestação de cuidados de saúde na era da telemedicina», Lex Medicinae, Ano 10, n.º 20 (2013), p. 17. 4 Rosa Matos/Rui Santana/ Rita Veloso Mendes/ Ana Patrícia Marques/Ricardo Mestre, Telemedicina em Portugal: onde estamos?, cit., p. 13. 5 Vera Lúcio Raposo, «“Você tem uma nova mensagem”: a prestação de cuidados de saúde na era da telemedicina», cit., pp. 18 e 19. 6 Rosa Matos/Rui Santana/ Rita Veloso Mendes/ Ana Patrícia Marques/Ricardo Mestre, Telemedicina em Portugal: onde estamos?, cit., p. 19.

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(e outros serviços relacionados com a saúde) à distância através do recurso a meios tecnológicos7.

2. As vantagens da telemedicina As vantagens trazidas pela evolução tecnológica no âmbito da telemedicina são inegáveis, tanto do lado do paciente, como do lado das instituições que providenciam o atendimento médico8. Um paciente pode beneficiar de uma consulta ou ser intervencionado mesmo numa zona remota, onde não tenha acesso a determinado especialista, poupando tempo e dinheiro9; os pacientes podem recuperar de uma intervenção em casa, com mais conforto e correndo menos riscos de contrair uma infecção com bactérias resistentes em ambiente hospitalar, o que será, sem dúvida, também uma mais valia em termos de saúde pública; os doentes crónicos podem ser telemonitorizados em casa, por meio de dispositivos que recolhem dados relativos a parâmetros clínicos, como o índice glicémico, etc.10; os médicos podem conferenciar entre si e beneficiar da maior experiência ou saber de outros colegas; do lado das instituições, a telemedicina permite, ainda, reduzir custos e optimizar processos, reduzir tempos de espera, evitar focos de contágio… Mas os desafios que lhe são inerentes devem ser tidos na devida conta, para que se minorem os riscos de potenciais danos.

7 A Comissão Europeia define-a como sendo “a prestação de serviços de saúde através da utilização das tecnologias da informação e das comunicações em situações em que o profissional de saúde e o doente (ou dois profissionais de saúde) não se encontrem no mesmo local. A telemedicina compreende a transmissão segura de informações e dados médicos, necessários para a prevenção, diagnóstico, tratamento e seguimento dos doentes, por meio de texto, som, imagens ou outras vias. (…) Outros serviços possíveis são os centros de atendimento/de informação em linha destinados aos doentes, as consultas à distância/em linha e as videoconferências entre profissionais de saúde”. Comissão das Comunidades Europeias, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões sobre os benefícios da telemedicina para os doentes, os sistemas de saúde e a sociedade, COM(2008)689 final, Bruxelas, 4/11/2008, p. 3, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/ PDF/?uri=CELEX:52008DC0689&from=EN, consultado em 10/03/2019. 8 A este respeito, v., por exemplo, Vera Lúcio Raposo, «The Doctor Just Pocked You (os Novos Desafios da E-Health)», Boletim de Ciências Económicas, LVII/III (2014), p. 2904. 9 Veja-se, por exemplo, a notícia do Diário de Notícias sobre a utilização de teleconsultas dadas por especialistas a pacientes que se situam em outras ilhas em Cabo Verde, disponível em https:// www.dn.pt/lusa/interior/telemedicina-reduz-a-um-terco-deslocacoes-para-consultas-em-hospitais-de-cabo-verde--10380261.html, consultada a 4/04/2019. 10 Sobre as vantagens da telemonitorização, v. Comissão das Comunidades Europeias, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu (…), cit., pp. 4 e ss. e Rosa Matos/Rui Santana/ Rita Veloso Mendes/ Ana Patrícia Marques/Ricardo Mestre, Telemedicina em Portugal: onde estamos?, cit., pp. 20 e 21, com referência a literatura estrangeira a este respeito.

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3. Os perigos da telemedicina Uma das desvantagens que costuma apontar-se à telemedicina é a da despersonalização da relação médico-paciente, mas outras há relacionadas com o uso de tecnologia, desde a rápida obsolescência dos equipamentos, os eventuais problemas com a sua utilização (por exemplo, falhas de software e de harware); ou relacionadas com as dificuldades de adaptação dos profissionais envolvidos; ou ainda, relacionadas com questões jurídicas (nomeadamente, com a falta de regulamentação nesta área, nomeadamente em sede de responsabilidade civil médica)11. Principalmente nos casos em que não há um contacto físico presencial entre o médico consultado e o paciente, nem nunca houve (os chamados casos de cybermedicina12), a telemedicina pode dar azo a problemas significativos. Já não se trata de “prolongar” ou de dar continuidade a um processo que se iniciou com um contacto físico, onde se procedeu a exames físicos presenciais e a um primeiro diagnóstico assim fundamentado. Falamos, agora, de situações em que o atendimento é integralmente feito à distância, com todos os riscos que lhe são inerentes: como pode o médico diagnosticar correctamente sem observar fisicamente o paciente? Mesmo que possa recorrer a um colega (como no exemplo que dei do médico da urgência que telefona a um especialista) para que este proceda à análise física, necessariamente há uma intervenção de permeio, uma valoração subjectiva desta análise, que pode induzir em erro o médico consultado à distância. Estes riscos aumentam consideravelmente quando o médico depende apenas das informações transmitidas pelo paciente, um leigo, que pode não interpretar os sintomas correctamente ou pode não dar relevância a certos dados, não os facultando ao clínico… Assim, o risco de um diagnóstico errado é consideravelmente maior, com tudo o que isso implica no que toca à responsabilidade

11 Rosa Matos/Rui Santana/ Rita Veloso Mendes/ Ana Patrícia Marques/Ricardo Mestre, Telemedicina em Portugal: onde estamos?, cit., pp. 22 e 23. Podem levantar-se, ainda, outras questões, relativamente à fiabilidade ou não da informação médica veiculada através de sites na Internet, nomeadamente pela ausência de códigos de conduta universais a este respeito. V. Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira, «Patient Safety in the Digital Age», Lex Medicinae, n.º especial (2014), p. 174. 12 Referindo que há autores que individualizam a cybermedicina como uma modalidade particular de telemedicina, caracterizada pelo “uso do e-mail ou de salas de chat e desprovido de qualquer réstia de contacto pessoal ente os participantes, logo, susceptível de maior cuidado”, Vera Lúcio Raposo, «The Doctor Just Pocked You (os Novos Desafios da E-Health)», cit., p. 2093.

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civil médica13. É, por isso, importante, que o médico consultado à distância respeite algumas normas de boas práticas.

4. Desafios inerentes à prática da telemedicina 4.1 A falta de regulamentação da telemedicina Não existe em Portugal legislação que regulamente a telemedicina14. Esta falta de clarificação jurídica – no que toca ao licenciamento, acreditação e registo dos serviços e profissionais de telemedicina, bem como à sua responsabilidade, ao reembolso das despesas médicas e à jurisdição competente – é apontada pela Comissão Europeia como um entrave à difusão destes serviços15. No entanto, podem encontrar-se algumas directrizes no actual Código Deontológico da Ordem dos Médicos16, que lhe dedica o Capítulo VII. O art. 46.º, n.º 1, determina que “[a] telemedicina deve respeitar a relação médico-doente, mantendo a confiança mútua, a independência de opinião do médico, a autonomia do doente e a confidencialidade”; o n.º 2 acrescenta que a consulta por telemedicina “não deve substituir a relação médico-paciente e deve realizar-se em condições sobreponíveis a uma consulta presencial, e só será dada quando o médico tiver uma ideia clara e justificável da situação clínica”; o n.º 3 estabelece, ainda, que o médico deve optar por usar ou não a telemedicina 13 Sobre os riscos inerentes às consultas telefónicas, por e-mail ou pela internet, bem como sobre o momento a partir do qual se entende já existir uma relação médico-paciente, Vera Lúcio Raposo, «“Você tem uma nova mensagem”: a prestação de cuidados de saúde na era da telemedicina», cit., pp. 22 e ss. 14 O mesmo sucede na maioria dos países da União Europeia. V. Alexandre Dias Pereira, «Patient Safety in E-Health and telemedicine», Lex Medicinae, n.º especial (2014), pp. 96 e 97. 15 Comissão das Comunidades Europeias, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu (…), cit., p. 9 Apesar de se tratar de matéria sob a alçada da responsabilidade dos Estados-Membros, ao abrigo do princípio da subsidiariedade, pode apontar-se a seguinte legislação europeia aplicável aos serviços de telemedicina: a Directiva 2000/31/CE (Directiva sobre comércio electrónico); a Directiva 95/46/CE, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade, que especifica uma série de requisitos suplementares relativos à confidencialidade e à segurança que a telemedicina e todos os outros serviços interactivos em linha têm de satisfazer para salvaguarda dos direitos individuais; a Directiva 2002/58/CE, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, que estabelece requisitos específicos aplicáveis aos prestadores de serviços de comunicações electrónicas através de redes de comunicações públicas, para garantir a confidencialidade das comunicações e a segurança das redes; a Directiva 2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Março de 2011, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, etc. Idem, p. 10. Sobre algumas destas, v. Alexandre Dias Pereira, «Patient Safety in E-Health and telemedicine», cit., pp. 99 e ss. 16 Aprovado pelo Regulamento 707/2016, pela Ordem dos Médicos, e publicado no DR n.º 139/2016, Série II, de 21 de Julho de 2016 (pp. 22575-22588).

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consoante disponha de informação fidedigna e suficiente para actuar de forma segura e eficaz17. Por outro lado, é necessário assegurar que os direitos do paciente, nomeadamente o seu direito à privacidade e o respeito pela confidencialidade dos seus dados pessoais18 – sendo que os dados relativos a informação médica são pessoalíssimos!19 – não são violados. Assim, o médico que opte por exercer telemedicina terá de possuir meios informáticos que assegurem o respeito por estes direitos, ou seja, programas de software e material de hardware adequados e actualizados, não permeáveis a ataques informáticos que possam fazer perigar a confidencialidade dos dados; não deve conceder acesso aos dados pessoais dos pacientes; deve possuir formação adequada para saber trabalhar com estes programas e com a tecnologia que permite a prática de telemedicina. Caso contrário, deverá abster-se de a praticar (v. art. 47.º, n.º 4 e n.º 6, art. 48.º e art. 49.º, n.º 3). Adicionalmente, o paciente sempre terá de ser informado dos seus direitos e dos riscos que corre ao submeter-se a esta modalidade de prestação de actos

17 Embora relativamente ao anterior Código Deontológico, Alexandre Dias Pereira considerava que, embora este não proibisse a telemedicina, não parecia considerá-la uma modalidade preferencial da prática médica. Cfr. Alexandre Dias Pereira, «Patient Safety in E-Health and telemedicine», cit., p. 98. Na verdade, o Bastonário da Ordem dos Médicos, em entrevista ao Público em 29/10/2017, afirmava que “[c]onsultas que não sejam presenciais não podem ser consideradas consultas médicas” e que “[o] que a Ordem aceita (…) é uma segunda opinião que um médico pode dar a um colega à distância”, referindo a peça jornalística “como é feito no Serviço Nacional de Saúde”. Cfr. https://www.publico.pt/2017/10/29/sociedade/noticia/ordens-na-area-da-saude-pedem-regulacao-da-medicina-a-distancia-1788623, consultado em 4/4/2019. 18 Sobre a protecção dos dados pessoais na saúde on-line, v. Alexandre Libório Dias Pereira, «Telemedicina e farmácia online: aspetos jurídicos da eHealth», cit., pp. 237 a 239. 19 A Comissão Europeia refere as preocupações éticas levantadas por uma maior difusão da telemedicina, nomeadamente nos seus efeitos na relação médico-doente; sublinha, ainda a importância do respeito pelo direito à privacidade e à protecção dos dados pessoais, como os relativos à saúde. V. Comissão das Comunidades Europeias, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu (…), cit., p. 8.

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médicos à distância, para que o seu consentimento20 para a prática destes actos seja válido (art. 47.º, n.º 5).

4.2 A lei aplicável aos casos transfronteiriços de telemedicina Um outro problema que a telemedicina levanta é o de se saber qual é o regime jurídico aplicável quando paciente e prestador do serviço médico se encontram em diferentes ordens jurídicas: tanto em sede de determinação da competência profissional, como em sede de responsabilidade civil ou até criminal. No âmbito da União Europeia, uma das liberdades asseguradas aos cidadãos europeus é a da livre prestação de serviços (art. 56.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia). Assim nenhum Estado-Membro pode impedir um médico seu nacional de prestar serviços médicos a pacientes de outros Estados-Membros, nem impedir os seus nacionais de procurar a prestação de serviços médicos noutro Estado-Membro, a menos que haja razões de interesse público envolvidas (como serão as de saúde pública). Esta liberdade inclui a prestação de actos médicos à distância e, portanto, a telemedicina21 22. Uma vez que a telemedicina pode implicar a celebração de um contrato de prestação de serviços médicos à distância, serviços estes remunerados e igualmente prestados à distância, “por via eletrónica e mediante pedido individual de um des20 Sobre o consentimento informado e a responsabilidade médica, v., por exemplo, Mara Sofia da Silva, Da responsabilidade civil do médico por falta de consentimento informado, Dissertação de Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2015, disponível em http://hdl.handle.net/1822/39078. Sobre o consentimento médico no âmbito de cuidados médicos transfronteiriços, v. Geraldo Rocha Ribeiro, «O Cuidado Médico Transfronteiriço e o Consentimento informado: as suas repercussões em sede de direito internacional privado», in João Loureiro/André Dias Pereira/Carla Barbosa (coord.), Direito da Saúde – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Vol. 3, Segurança do Paciente e Consentimento Informado, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 235 e ss. Para uma perspectiva de direito comparado, Virgilio Rodríguez-Vázquez,«Estudio de derecho comparado sobre el consentimiento en los tratamientos médicos curativos», in João Loureiro/André Dias Pereira/Carla Barbosa (coord.), Direito da Saúde – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Vol. 3, Segurança do Paciente e Consentimento Informado, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 133 e ss. No âmbito do Direito da União Europeia, v, ainda, Herman Nys, «The information rights of the patient in the European Patients’ Rights Directive», in João Loureiro/André Dias Pereira/Carla Barbosa (coord.), Direito da Saúde – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Vol. 3, Segurança do Paciente e Consentimento Informado, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 67 e ss. 21 Vera Lúcio Raposo, «The Doctor Just Pocked You (os Novos Desafios da E-Health)», cit., pp. 2904 e 2905. 22 Também o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias considera que a liberdade de circulação abrange a liberdade de o paciente procurar e receber tratamento médico noutro Estado-Membro. A Comissão Europeia refere que esta prerrogativa abrange igualmente a telemedicina. V. Comissão das Comunidades Europeias, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu (…), cit., p. 10.

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tinatário de serviços”, será um serviço da sociedade de informação, pelo que fica sujeita ao regime jurídico do comércio eletrónico23. Por outro lado, a Directiva 2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Março de 2011, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, estabelece que os serviços médicos prestados se regem pela lei do Estado-Membro de tratamento (art. 4.º, n.º 1, al. a)), considerando “Estado-Membro de tratamento” o “Estado-Membro em cujo território os cuidados de saúde são efectivamente prestados ao doente. No caso da telemedicina, a referida Directiva considera que os cuidados de saúde são prestados no Estado-Membro em que o prestador dos cuidados de saúde está estabelecido” (art. 3.º, al. d)). Assim, é de acordo com a lei do Estado onde o médico pratica telemedicina que se determinará se este profissional de saúde tem ou não competência para praticar actos médicos, ou seja, as autoridades competentes do Estado a que pertence o paciente não podem impedir a prestação destes serviços por este médico não estar devidamente registado na sua ordem jurídica (nomeadamente na sua Ordem dos Médicos ou instituição correspondente)24. A referida Directiva proíbe qualquer discriminação em função da nacionalidade da prestação do serviço, desde que assegurada a assistência médica no seu território (art. 4.º, n.º 3 e n.º 4). Além disso, se o Estado de origem do paciente comparticipar aquele serviço médico, esta comparticipação será devida ainda que o serviço médico tenha sido prestado noutro Estado-Membro por via da telemedicina (art. 7.º e ss.). Há ainda, a possibilidade de se aplicar o regime previsto pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Nos termos deste regulamento, se as partes tiverem celebrado um contrato de prestação de serviços médicos, podem convencionar a lei aplicável à sua relação contratual (art. 3.º); se o não fizerem e, portanto, o contrato seja omisso a este respeito, rege a lei do Estado onde o prestador de serviços tem a sua residência habitual (art. 4.º, n.º 1, al. b), do referido regulamento). Caso o paciente seja tido como um consumidor, se o profissional dirigir a sua actividade para o Estado-Membro onde o paciente tem a sua residência habitual, aplica-se a lei desse Estado (art. 6.º do Regulamento n.º 593/2008); não sendo o caso, a lei aplicável é a do Estado onde o prestador tem a sua residência habitual25. 23 Nomeadamente, à Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, transposta pelo DL nº 7/2004, de 7 de Janeiro, já alterado pelo DL n.º 62/2009, de 10 de Março e pela Lei n.º 46/2012, de 29 de Agosto. Sobre esta matéria, v. Alexandre Libório Dias Pereira, «Telemedicina e farmácia online: aspetos jurídicos da eHealth», cit., pp. 231, 239 e 240. 24 Neste sentido, Vera Lúcio Raposo, «The Doctor Just Pocked You (os Novos Desafios da E-Health)», cit., pp. 2908 a 2909 e 2911 a 2912. 25 Alexandre Dias Pereira, «Patient Safety in E-Health and telemedicine», cit., p. 105.

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Caso não exista um contrato de prestação de serviços médicos, mas haja danos causados em sede de responsabilidade civil médica, pode, ainda, aplicar-se o Regulamento Roma II26, quanto a conflitos de leis relativamente a obrigações não contratuais em matéria civil e comercial. Este determina que, relativamente a responsabilidade civil, a lei aplicável é a do Estado em que o dano ocorreu, ou seja, no nosso caso, o Estado-Membro em que o paciente recebeu o tratamento27.

4.3 Qual a jurisdição competente? Para a determinação da jurisdição competente em caso de litígio, devemos recorrer ao Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Nestes termos, as partes podem escolher qual o foro que será competente para dirimir eventuais litígios (art. 25.º). Caso o não façam, o foro competente será o do Estado-Membro onde o réu se encontre domiciliado, independentemente da sua nacionalidade (art. 4.º). Contudo esta regra comporta excepções (v. art. 5.º, que remete para os arts. 7.º a 26.º): - tratando-se de responsabilidade contratual, o art. 7.º, 1), b), determina que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, perante o tribunal onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, sendo que, no caso da prestação de serviços, este é o lugar “onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados”. Poderia interpretar-se esta norma no sentido de, no caso da telemedicina, ser competente o tribunal do local onde o paciente recebeu o acto médico28. No entanto esta interpretação não vai de encontro ao que vimos suceder na Directiva em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, onde se considera que, no âmbito da telemedicina, os cuidados de saúde são prestados no Estado-Membro em que o prestador dos cuidados está estabelecido. - tratando-se de um caso de responsabilidade civil extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro poderão ser demandadas no “tribunal do lugar

26 Regulamento (CE) n.º 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Julho de 2007. 27 Alexandre Dias Pereira, «Patient Safety in E-Health and telemedicine», cit., p. 105. O autor explica que a aplicação dos Regulamentos Roma I e II não é afastada pela Directiva 2011/24/EU, pois esta refere-se principalmente a questões de direito público. Esta Directiva, de todo o modo, não contradiz os Regulamentos: nos termos do art. 17 do Regulamento Roma II, na avaliação da conduta do lesante têm-se em consideração as normas de segurança e conduta vigentes no local onde se verificou o facto lesivo (do Estado onde o prestador dos serviços médicos praticou a telemedicina) ainda que as partes tenham escolhido outra lei para se aplicar à responsabilidade civil no caso concreto. Idem, pp. 105 e 106. 28 Como parece entender Vera Lúcio Raposo embora em face do regulamento anterior. Idem, p. 2911.

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onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” (ou seja, o local onde o paciente recebeu os cuidados médicos – art. 7.º, 2)). - também podem aplicar-se aqui os arts. 17.º e ss., considerando o paciente um consumidor, caso em que este poderá intentar a acção quer no tribunal do domicílio do médico, quer no tribunal do seu domicílio (art. 18.º, n.º 1). Algumas destas disposições excepcionais serão mais vantajosas para o lesado. O paciente terá todo o interesse em demandar o médico num tribunal situado no Estado onde reside (e não no Estado do domicílio do lesante, que seria o foro competente caso se aplicasse a regra geral do art. 4.º). Como vemos, no caso de responsabilidade contratual, ao invés de utilizar a norma do art. 7.º, 1), b), que considera competente o foro do Estado onde o prestador dos cuidados médicos está estabelecido, o lesado poderá recorrer à norma do art. 18.º, n.º 1, e escolher o tribunal do seu domicílio. O médico é um profissional que presta serviços médicos e que se comprometeu a fazê-lo nos termos do contrato celebrado com o paciente, uma pessoa individual que recorre aos serviços médicos para uma finalidade que é estranha à sua actividade profissional ou comercial, ou seja, por esta óptica, o paciente é um consumidor29. Contudo, pode defender-se que, pelo menos em certos casos, o paciente não ocupa a posição de um consumidor: pensemos nos casos em que não há uma relação contratual. Embora, normalmente, tais casos sejam os que sucedem no âmbito do atendimento médico proporcionado pelo Sistema Nacional de Saúde, o que excluiria, em princípio, a prática da telemedicina, é possível equacionar-se esta possibilidade, caso haja protocolos de cooperação com hospitais de outros Estados-Membros da União Europeia. Nestes casos, o lesado recorrerá ao art. 7.º, 2), por nos encontrarmos perante um caso de responsabilidade médica extracontratual, ou seja, poderá demandar o médico no tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso (o local onde recebeu os cuidados médicos). Para além destas hipóteses, nos casos em que há um contrato de prestação de serviços médicos celebrado entre o médico e o paciente, sempre se poderá defender a existência de um concurso de responsabilidades: além da violação das obrigações decorrentes do contrato, o lesado também se vê violado nos seus direitos à integridade física (ou, mesmo, no seu direito à vida), pelo que também estarão preenchidos os pressupostos da responsabilidade extracontratual. Apesar de, normalmente nos casos de concurso de responsabilidades, ser habitual seguir-se a teoria da consunção (que considera que a responsabilidade contratual consome a extracontratual, em vir-

29 O art. 6.º do Regulamento Roma I considera contratos celebrados por consumidores “os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar-se estranha à sua actividade comercial ou profissional («o consumidor»), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profissionais («o profissional»)”.

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tude de ser a mais vantajosa para o lesado30), é defensável permitir-se ao lesado optar por demandar o médico nos termos da responsabilidade extracontratual (teoria da opção31), passando o foro competente a ser o do lugar onde ocorreu o facto danoso, ou seja, o local onde recebeu os cuidados médicos.

4.4 A responsabilidade civil médica na telemedicina – algumas reflexões Como já dissemos, a telemedicina pode causar danos significativos ao paciente atendido ou tratado à distância. Em primeiro lugar, como vimos, será substancialmente mais difícil diagnosticar o problema de saúde do paciente à distância, mesmo tendo acesso aos resultados de exames clínicos que se tenham prescrito e enviado por e-mail ou sms. Um erro no diagnóstico pode conduzir a um tratamento potencialmente danoso ou a um tratamento inútil, perdendo-se tempo e agravando-se o problema que ficou sem solução. Este erro de diagnóstico imputar-se-á ao médico se este devia ter-se abstido de decidir em face da informação recolhida, nomeadamente, se esta era insuficiente. Por outro lado, no campo das intervenções médico-cirúrgicas à distância, há ainda outros problemas que podem levantar-se. Quem é responsabilizado caso o paciente sofra danos no âmbito de uma intervenção em que um médico executa a intervenção sob orientação de um outro que a ela assiste à distância? Quem responde, caso haja erro médico? Como se determina quem falhou? Foi o médico que orientava a intervenção cirúrgica à distância que deu uma indicação errada? Mas e se ele não conseguia ver bem e confiou na palavra errada daquele que está a operar? Responde só um ou devem responder ambos? De quem é a culpa? E já que falamos de culpa, qual é o grau de diligência que exigimos ao médico que pratica telemedicina, que é o mesmo que dizer, qual é o critério que deve utilizar-se para a avaliação da conduta do(s) médico e da sua equipa técnica (outros médicos, enfermeiros, etc.)? E, já agora, a quem pertence o ónus da prova? Como vemos, a telemedicina levanta questões prementes no que toca à responsabilidade médica e, por isso mesmo, há autores que defendem que os pressupostos da responsabilidade civil e criminal devem ser-lhe adaptados, o que não significa “necessariamente conduzir à debilidade das regras éticas, deontológicas e jurídicas

30 Defendendo o sistema de não cúmulo “em decorrência de um princípio de consunção”, por exemplo, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra, Almedina, 2018 (reimpr. da ed. 2009), pp. 546 a 553. 31 Permitindo ao autor optar pela responsabilidade civil contratual ou pela extracontratual, desde que os pressupostos de ambas estejam preenchidos, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017 (reimpr. da ed. de 2000), p. 637. Igualmente, António Pinto Monteiro, Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2011 (reimpr. da ed. de 1985), pp. 425 e ss., em especial pp. 430 e 431.

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que pautam a atividade médica, mas, simplesmente, a um novo entendimento sobre as mesmas”32. Em primeiro lugar, debrucemo-nos sobre o grau de diligência que deve exigir-se ao médico. Cremos que o art. 487.º, n.º 2, do CC, permite uma resposta satisfatória a esta questão. A culpa do médico (e da sua equipa) deve ser apreciada nos termos da conduta de um bom pai de família em face das circunstâncias em causa, ou seja, em face da prestação dos cuidados médicos à distância. O bom senso dita que se tenha em consideração que há circunstâncias aqui que não podem imputar-se ao médico, desde que o paciente tenha sido perfeitamente esclarecido dos riscos inerentes a esta intervenção à distância. Por exemplo, se ocorreu uma falha nas comunicações que impediu o médico que se encontrava à distância de dar continuidade ao procedimento, tendo sido o médico que se encontrava presente fisicamente a ter de “improvisar” sem as indicações do especialista, e se o paciente foi devidamente esclarecido da possibilidade de esta vicissitude poder ocorrer durante a intervenção, nenhum deles pode ser responsabilizado, caso tenham feito tudo o que estava ao seu alcance. Quanto à questão de saber quem responde se nos encontrarmos perante uma equipa médica33, cremos que deve valer o regime geral da responsabilidade civil médica: se temos um contrato com o médico que actua à distância, pode presumir-se a culpa deste, nos termos do art. 799.º, n.º 1, e este responderá também pelas pessoas que utilize para o cumprimento da sua obrigação (ou seja, a equipa que o assiste presencialmente), nos termos do art. 800.º. Apesar de, geralmente, no âmbito da medicina, nos encontrarmos perante obrigações de meios e não de resultados, a presunção de culpa pode aplicar-se relativamente à falta de diligência a que o médico estava adstrito (e não relativamente ao resultado final)34. 32 Vera Lúcio Raposo, «“Você tem uma nova mensagem”: a prestação de cuidados de saúde na era da telemedicina», cit., p. 29. 33 Sobre o conceito de equipa médica, as vantagens da sua actividades e os riscos que lhe são inerentes, v. Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, A Negligência Médica Hospitalar na Perspectiva Jurídico-Penal. Estudo sobre a Responsabilidade Criminal Médico-Hospitalar, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 279 e ss. 34 Igualmente considerando que, estando em causa um caso de responsabilidade contratual médica, é aplicável a presunção de culpa do médico prevista no art. 799.º, n.º 1, Filipe de Albuquerque Matos, «Responsabilidade Médica e relação de comissão», in João Loureiro/André Dias Pereira/Carla Barbosa (coord.), Direito da Saúde – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Vol. 2, Profissionais de Saúde e Pacientes. Responsabilidades, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 22 e 23; Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico. Reflexões sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 109; André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 709 e ss. Dando conta da doutrina que defende a posição contrária, em virtude de a obrigação dos médicos ser uma obrigação de meios e não de resultado, v., por todos, Rute Teixeira Pedro, op. cit., pp. 90 e ss., em especial, pp. 103 e ss.

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E-Health: desafios e problemas da telemedicina Sónia Moreira

Caso nos encontremos fora do âmbito contratual, pode tentar aplicar-se o regime da responsabilidade do comitente (médico que actua através de telemedicina) por actos do seu comissário (um membro da sua equipa técnica que assista presencialmente), caso o dano tenha sido causado por este no exercício da sua função, desde que exista uma relação de subordinação jurídica entre este e aquele, ou seja, desde que o comitente tenha o poder de instruir (poder de direcção sobre) o comissário e de fiscalizar a sua acção35. Não será, no entanto, normal que assim seja, pelo menos entre médicos. Os médicos são, normalmente, independentes em termos profissionais, subordinando-se apenas às legis artis36, a menos que se encontrem, por exemplo, ainda em fase de formação37. Assim, possivelmente, cada um dos médicos responderá individualmente na medida da sua participação na causação do dano; havendo mais do que um responsável, responderão ambos solidariamente nos termos do art. 497.º do CC38. Já não será assim caso um médico recorra a outro para pedir uma segunda opinião ou um conselho, tendo transmitido pouca informação (entendendo-se que falhou no seu dever de prestar toda a informação relevante) e o consultado à distância tenha respondido sem se inteirar devidamente de todas as circunstâncias do caso (tendo, assim, igualmente falhado nos seus deveres, ao menos deontológicos, pois devia ter-se recusado a responder com fundamento na falta de informação). É que o segundo médico não possui uma relação médico-paciente com o doente, só tendo actuado nos termos do art. 485.º do CC perante o colega, pelo que não poderá ser

35 Sobre a noção de relação de comissão, v. por todos, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, cit., pp. 639 a 642. 36 Por isso, Filipe de Albuquerque Matos entende que não será possível responsabilizar os hospitais privados e as clínicas privadas pela actuação dos médicos que contrataram (visto estes não lhes estarem subordinados juridicamente no que toca ao exercício da medicina) por via do art. 500.º, sendo necessário recorrer-se ao art. 800.º, uma vez que este não exige o pressuposto da relação de comissão. Cfr. Filipe de Albuquerque Matos, «Responsabilidade Médica e relação de comissão», cit., pp. 14 a 19. O autor considera que o mesmo sucede no que toca aos estabelecimentos de saúde públicos, pelo que conclui que “a independência inquestionável do exercício da medicina impede a atribuição aos médicos do status de comissário”. Idem, p. 38. 37 Idem, p. 28. Mesmo trabalhando em equipa, e mesmo existindo uma hierarquia claramente estabelecida, “tal não faz beliscar a independência dos médicos, cuja actuação é chefiada por um outro profissional. Relativamente à prática do acto médico, não temos dúvidas em afirmar a sua exclusiva submissão às leges artis do respectivo sector de actividade”. Idem, p. 31. 38 Ao contrário, considerando que “em termos civis – quer fazendo uso do art. 500.º do CC, quer do art. 800.º do CC – o cirurgião é responsável pela conduta da sua equipa”, Vera Lúcia Raposo, Do Ato Médico ao Problema Jurídico, Coimbra, Almedina, 2013, p. 298. A autora considera que em qualquer dos casos se exige, para que o cirurgião responda, a culpa do comissário (art. 500.º) ou do auxiliar (art. 800.º), sem as quais aquele só responderá por actos próprios, caso tenha culpa in elegendo, in vigilando ou in instruendo. Idem, p. 299.

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responsabilizado pelo conselho prestado39, a menos que tenha assumido a responsabilidade pelos danos ou que tenha o dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação (pense-se no formador de um médico a estagiar, por exemplo, ou no caso de o paciente ter sido, efectivamente, reencaminhado para o especialista40). Neste último caso, ambos os médicos responderão solidariamente (art. 497.º). Por outro lado, normalmente, os casos de prestação de cuidados médicos fora do âmbito contratual inserem-se no contexto da prestação de cuidados de saúde no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, o que significa que devemos chamar à colação o regime da responsabilidade extracontratual do Estado por actos de gestão pública, ou seja, a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro41. Não se vê por que razão este regime não poderá ser aplicado caso a prestação de serviços médicos tenha sido realizada através de telemedicina. Nos termos do art. 7.º, n.º 1, desta lei, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas (onde se incluem os hospitais públicos) respondem exclusivamente pelos danos causados ilicitamente com culpa leve pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, sendo que se presume a culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos (art. 10.º, n.º 2). Nos termos do art. 9.º, a ilicitude deriva da violação de “disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares” ou da infracção “de regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos”. Assim, o hospital responde pelos danos causados pelo médico que tenha actuado negligentemente, o que se presume, mas não há responsabilidade directa deste perante o paciente. No entanto, caso haja danos que resultem de acções ou omissões ilícitas cometidas com dolo ou culpa grosseira (com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo), o art. 8.º, n.º 1, desta Lei responsabiliza directamente os referidos titulares de órgãos, funcionários e 39 Considerando, assim, que o segundo médico só responderá, eventualmente, perante aquele que lhe pediu conselho, mas não perante o paciente, Vera Lúcio Raposo, «“Você tem uma nova mensagem”: a prestação de cuidados de saúde na era da telemedicina», cit., p. 40. Em sentido contrário, considerando que o médico teleconsultado por um colega não é obrigado a responder (se não tem conhecimentos ou suficiente informação do doente para emitir um parecer fundamentado), mas, se o fizer, é responsável pela informação prestada, Isabel Constança Cachapuz Guerra, Telemedicina, relação médico-doente e aspectos deontológicos, disponível em https:// ordemdosmedicos.pt/telemedicina-relacao-medico-doente-e-aspectos-deontologicos/, consultado a 4/4/2019. 40 Considerando que o especialista responde perante o paciente que lhe foi reencaminhado, ainda que não exista entre eles qualquer vínculo contratual, por força das “regras delituais” e “das exigências de neminem laedere”. Filipe de Albuquerque Matos, «Responsabilidade Médica e relação de comissão», cit., pp. 31 a 33. 41 Sobre a natureza extracontratual da responsabilidade civil por danos causados em sede de prestação de serviços médicos em estabelecimentos públicos, v., por todos, Filipe de Albuquerque Matos, «Responsabilidade Médica e relação de comissão», cit., pp. 33 e ss.

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agentes, respondendo o hospital solidariamente com eles (n.º 2 do art. 8.º) e possuindo direito de regresso relativamente a tudo o que tenha vindo a pagar (n.º 3 do art. 8.º).

5. Conclusão Cremos que é urgente que o legislador legisle em matéria de prestação de cuidados de saúde à distância, ou seja, em matéria de telemedicina. Em primeiro lugar, porque, apesar de a aplicação do regime geral da responsabilidade civil permitir dar resposta aos danos causados ao paciente, como vimos, seria útil a previsão de normas de conduta que permitissem facilitar a prova da ilicitude do acto (devido à sua violação). Em segundo lugar, seria igualmente útil ponderar-se em que circunstâncias se poderia presumir, ou não, a culpa do médico ou da sua equipa. Em ambiente hospitalar (hospitais públicos), já vimos que se presume a negligência do médico para efeitos de responsabilização do hospital; havendo contrato de prestação de serviços médicos (por exemplo, em ambiente de clínica privada ou de hospital privado), também. Mas pode haver casos que escapem a estas normas, ficando o paciente onerado com uma prova extremamente difícil, atendendo, não só ao facto de ser um leigo, como ao facto de não ter acesso a toda a informação clínica. Finalmente, porque a telemedicina é uma realidade que já se encontra entre nós, já faz parte do nosso dia-a-dia, ainda que não nos tenhamos apercebido disso. Perguntamo-nos, até, se os médicos não vão passar a ser pressionados para a praticar, estando acessíveis aos pacientes para dar continuidade à assistência médica prestada. Questionamos, na verdade, se, a certa altura, não será imputada responsabilidade ao médico que não a pratique, por deixar o paciente “ao Deus dará”42. Mas como podemos obrigar alguém a praticar telemedicina, se não estabelecermos os limites daquilo que lhe é exigível?

42 Igualmente neste sentido, parece-nos, Vera Lúcio Raposo, «“Você tem uma nova mensagem”: a prestação de cuidados de saúde na era da telemedicina», cit., p. 30.

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LIMITES NORMATIVOS DA CELERIDADE NO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES: DO DIREITO DE AUDIÇÃO E DEFESA E O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NO PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL COMUM E TRIBUTÁRIO Tiago Lopes de Azevedo Assistente Convidado da Escola de Direito da Universidade do Minho Investigador do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação

Resumo: Este artigo tem por propósito fundamental enquadrar o princípio da celeridade do procedimento contraordenacional no respeito por algumas garantias sancionatórias no domínio do Direito contraordenacional adjetivo tributário, em especial no âmbito do Direito de audição e de defesa e do princípio da publicidade, demonstrando-se que o princípio da celeridade não pode ser uma norma absoluta, sob pena de violação da constitucionalidade.

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Limites normativos da celeridade no Direito das Contraordenações: do Direito de audição e defesa e o princípio da publicidade no procedimento contraordenacional comum e tributário Tiago Lopes de Azevedo

Palavras-Chave: Direito das Contraordenações; Princípio da Celeridade; Direito de Audição e Defesa; Princípio da Publicidade.

1. Exposição de motivos O presente artigo tem como fundamento as Jornadas Comemorativas dos 25 anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, em 2019. O convite que me foi endereçado era irrecusável por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, sendo eu o produto do ensino daquela Escola de Direito, considero que tinha de verter por escrito algum do conhecimento apreendido, devolvendo-o à comunidade jurídica e, em especial, à Escola de Braga, para que isto prossiga o seu fito. Por outro lado, estando as Jornadas Comemorativas vocacionadas para o futuro, o tema que ora se apresenta tinha de estar delineado no domínio do Direito contraordenacional. Um ramo do Direito sancionatório público que desde finais da década de 70 tem feito jusadministrativistas e juspenalistas delinearem, de posições distintas, a atuação sancionatória estadual; mas que, hodiernamente, se revela muito apetecível para o domínio estadual (1). Ora, aquela atuação estadual quer-se legalmente delimitada e não, como às vezes parece, árida de regras e de princípios normativos. É aquele o espírito que nos leva a debruçar sobre o princípio da celeridade, tendo em conta o Direito de audição e de defesa do arguido contraordenacional e o princípio da publicidade de atos contraordenacionais.

2. O princípio da celeridade no procedimento contraordenacional O princípio da celeridade é um princípio estruturante do Direito contraordenacional, servindo de base para a autonomia do Direito contraordenacional no domínio do Direito público sancionatório de caráter coletivo. A natureza jurídica do Direito contraordenacional, enquanto um ramo do Direito sancionatório, implica que a responsabilidade do arguido contraordenacional esteja vinculada às finalidades sancionatórias, de prevenção geral e de prevenção especial. Assim, o decurso do tempo sem que o arguido seja efetivamente sancionado tem como reflexo inevitável o esbatimento daquelas finalidades sancionatórias. Aquele esbatimento é tanto maior quanto o tempo que medeia a prática da conduta contraordenacional e o cumprimento da sanção, na qual a administração sancionadora efetiva no arguido a sanção decorrente da conduta contraordenacional; sendo aquele esbatimento menor quando, não 1

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Sobre esta evolução contraordenacional, veja-se o nosso Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, Coimbra, Coimbra Editora, 2011.


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obstante o tempo que medeia a prática da conduta contraordenacional e o cumprimento da sanção, a conduta praticada é mais grave perante o bem contraordenacional afetado. O limite deste esbatimento há de ser o momento cronológico específico em que já não é possível a realização de finalidades de prevenção geral ou de prevenção especial, não sendo por isso necessária a execução da sanção. A contrario sensu, o cumprimento da sanção, porque não cumpre as finalidades sancionatórias, revela-se desproporcional, sendo por isso desconforme à Constituição, por força do respetivo art. 18.º, n.º 2. Os atos proferidos pelas autoridades administrativas contraordenacionais podem ser classificados em razão do seu objeto teleológico: (1) ou o ato tem por objeto teleológico mediato finalidades sancionatórias, estando-se por isso perante um ato para-sancionatórios contraordenacionais, nos termos do art. 55.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações; (2) ou o ato tem por objeto teleológico imediato finalidades sancionatórias, estando-se neste caso perante atos sancionatórios em sentido estrito – atos de aplicação de sanções, nos termos do art. 58.º do Regime Geral das Contraordenações. No primeiro caso a administração sancionatória cria um ato que não visa a satisfação de finalidades de prevenção geral e especial, como por exemplo a apreensão de objetos, a realização de buscas e revistas. No segundo caso a administração sancionatória criar um ato que visa a satisfação de finalidades de prevenção geral e especial, servindo estas para delimitar qualitativamente e quantitativamente a respetiva sanção. Hoje em dia, assistimos a um desenvolvimento exponencial das tecnologias de informação. A tecnologia está cada vez mais acessível a todos os estratos sociais, quaisquer que sejam as suas habilitações e conhecimentos informáticos. A rapidez, comodidade e facilidade de utilização são conceitos inerentes à sociedade de informação. São as novas tecnologias de informação. Por outro lado, novos desafios são colocados ao Estado. Desta forma, para que a sociedade sobreviva e cresça comunitariamente, o Estado vai-se servir das novas tecnologias de informação. Ora, um dos domínios em que se vai notar o uso da informática por parte do Estado é no domínio do ius puniendi em sentido amplo, englobando-se no mesmo a constituição e notificação de atos sancionatórios e para-sancionatórios contraordenacionais. O princípio da celeridade contraordenacional impõe que o procedimento contraordenacional termine no mais curto espaço de tempo possível, tendo em conta as finalidades sancionatórias, por um lado, as garantias de defesa do arguido, por outro lado, e a prossecução do interesse público sob a perspetiva da legalidade sancionatória contraordenacional. Não se pode esquecer que o Direito contraordenacional foi entre nós apropriado, seguindo o espírito da Gesetz über Ordnungswidrigkeiten, como

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forma de reação à hipertrofia do Direito penal em alguns setores da sociedade, caraterizada por um desproporcional formalismo processual face aos jurídicos em causa. Assim, desjudicializou-se o processo sancionatório, atribuindo-se às autoridades administrativas a competência impulsionadora, instrutória e decisória do procedimento sancionatório, reservando-se a intervenção jurisdicional sancionatória para um momento facultativo posterior à decisão contraordenacional, com um caráter impugnatório. Os mecanismos que tendencialmente tornam o procedimento contraordenacional mais célere não se ficam pela desjudicialização do procedimento contraordenacional. Neste sentido, verbi gratia, encurtou-se os prazos de prescrição do procedimento e da sanção, limitou-se o n.º de testemunhas em alguns regimes gerais setoriais, como no art. 72.º, n.º 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, limitaram-se os formalismos da audiência, por força do art. 66.º do Regime Geral das Contraordenações, eliminou-se a possibilidade de recurso da sentença em matéria de facto no Regime Geral das Contraordenações, no seu art. 75.º e limitou-se a participação do representante da autoridade administrativa no julgamento, conforme o art. 70.º daquele regime geral e no recurso da sentença, nos termos do art. 73.º do mesmo Regime Geral das Contraordenações. Consequentemente, entende-se que o procedimento e o processo contraordenacional não oferecem a mesma medida de garantias ao arguido que existem no Direito adjetivo penal. Isso impõe a natureza do Direito contraordenacional e possibilita a Constituição (2). É, aliás, neste sentido que deve interpretar-se a norma remissiva prevista no art. 41.º do Regime Geral das Contraordenacional, quando impõe que as soluções importadas para o Direito contraordenacional sejam devidamente adaptadas. Por outro lado, deve sublinhar-se que a celeridade não deve colocar em causa desproporcionalmente as garantias dos sujeitos procedimentais e processuais inscritas nos princípios e regras de Direito contraordenacional. Assim, a celeridade deve ser balizada pela justa medida das garantias procedimentais e processuais ínsitas nos princípios e regras sancionatórias, tendo em conta o princípio da proporcionalidade. É evidente a ânsia por parte do Estado de agilizar todo o procedimento sancionatório das infrações contraordenacionais. Diga-se, não obstante, que se compreende esta opção. É que a ordem comunitária e a atividade administrativa não têm, sem sombra de dúvida, o mesmo tempo que um procedimento contraordenacional típico, dos anos 80. O Estado não consegue efetivar as suas funções mais básicas se a atividade administrativa não avança, se não se desenvolve ao mesmo ritmo alucinante que a aldeia global hodierna está sujeita. Mas não se pode admitir que o Estado sancionador colida com os prin2 Assim, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 344/93, Antero Alves Monteiro Dinis (Tribunal Constitucional 1993).

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cípios mais básicos da vida em sociedade. Não é admissível que o Estado, sob a veste de uma modernidade securitária, elimine os princípios básicos que sempre delimitaram a sua atividade sancionatória. Disto temos de estar bem cientes.

2. Limites normativos ao princípio da celeridade Nos termos do art. 27.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na determinação em concreto da medida da coima, a sanção principal no Direito contraordenacional, a autoridade administrativa gradua aquela sanção em função da culpa do agente. Além deste artigo, o art. 3.º, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, dá uma orientação importante, ao determinar que, na matéria contraordenacional, o diploma normativo aplicável é o «regime geral do ilícito de mera ordenação social», que aqui designamos por Regime Geral das Contraordenações. Assim, também no Direito tributário contraordenacional não se está perante uma responsabilidade objetiva mas, pelo contrário, subjetiva, respeitando-se assim o princípio da culpa. Com vista a uma eficaz cobrança de tributos, a administração tributária tem vindo a modernizar todo o procedimento tributário, desde a determinação objetiva e subjetiva de sujeição a pagamento tributária, à cobrança coerciva do tributo, passando pela liquidação e pagamento voluntário. Ora, também a deteção de infrações tributárias está sujeita a esta modernização. Referimo-nos ao «sistema de contraordenações», o qual deteta as infrações, envia notificação para que o arguido apresente a sua defesa, conta os prazos, determina em cada caso concreto o valor das coimas e por fim labora a decisão condenatória e notifica o arguido. Caso este não pague as coimas, segue-se a cobrança executiva igualmente automática, nos termos do processo de execução fiscal, de acordo com o disposto no art. 3.º, alínea d), do Regime Geral das Infrações Tributárias. Estamos perante um sistema informático que aparece aos olhos do sujeito passivo de imposto como uma plataforma amigável. Numa veste de simpatia e comodidade, a administração tributária controla (e bem) os passos do sujeito passivo, detetando imediatamente a prática de uma infração contraordenacional e tramitando todo o procedimento sancionatório. Estamos aqui perante uma autoridade administrativa sancionatória virtual. É uma máquina que inicia e completa todos os trâmites procedimentais. Em virtude das crescentes dificuldades económicas, veio o Estado aumentar a eficácia da administração tributária, esquecendo que nem tudo se pode resolver automaticamente. A informática pode e deve ajudar o Estado na busca de receitas, através da liquidação e cobrança de tributos, mas já não pode comprometer princípios basilares do Direito sancionatório, até porque a sanção não

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é um tributo – tem finalidades (sancionatórias) de prevenção geral e especial e não, finalidades económicas, de obtenção de receita (3). Parece-nos, salvo o devido respeito, que se faz alguma confusão entre obrigações tributárias e sanções tributárias. As obrigações tributárias traduzem-se pela existência de relações creditícias entre o sujeito passivo e o Estado, com vista à cobrança de tributos. E por tributos, deve-se entender que são todas as prestações coactivas «e com finalidades financeiras» (4). Ou seja, são prestações em que através do seu ius imperii o Estado não coloca na disponibilidade do sujeito passivo a opção de pagar ou não pagar, por um lado; e por outro lado, são prestações com finalidades financeiras, porque o pagamento dos tributos visa a «produção de bens públicos e semipúblicos, destinados a satisfazer necessidades de carácter tendencialmente coletivo e público (diplomacia, defesa, segurança, iluminação pública, saúde […])» (5). Relativamente às sanções tributárias, a nosso ver, não se está perante relações creditícias naquele sentido obrigacional. Neste caso, há condutas que são ilegais [ao contrário das obrigações tributárias acima referidas, que tendencialmente derivam de condutas legais (6)] e que ao serem detetadas, são sancionadas com coimas, como sanção principal. Além disso, no caso das contraordenações tributárias, tendencialmente, está-se perante advertências sociais (7). Por outro lado, como já referimos, as sanções têm finalidades de prevenção geral e especial perante a conduta ilegal do agente. Não têm como fim a obtenção de receitas, embora estas sejam uma consequência das condutas ilegais e respetiva sanção. Ora, se os sistemas informáticos podem facilmente trabalhar na área das obrigações tributárias, quantificando e qualificando-as, para posteriormente as cobrar; já quanto às sanções contraordenacionais tributárias, somos da opinião de que tais sistemas informáticos não sabem, não conseguem aferir a culpa contraordenacional de um agente.

3 Claro que as sanções são uma fonte de receita para o Estado. Não se pode negar. Mas as sanções são uma fonte de receita, não devido à finalidade das sanções, mas como uma mera consequência da prática da condutas ilegais e respetivo sancionamento. 4 Conferir Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 12. 5 Joaquim Freitas da Rocha, ob. cit., p. 13. 6 Sobre a tributação de atos ilícitos, veja-se a dissertação de mestrado de Joaquim Freitas da Rocha, As modernas exigências do princípio da capacidade contributiva – sujeição a imposto dos rendimentos provenientes de actos ilícitos, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 390, Junho de 1998, pp. 7–201. 7 Vide, Eduardo Correia, «Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social», Boletim da Faculdade de Direito XLIX, 1973, p. 271.

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Nestes termos, pensamos que há a violação da Constituição e da lei, designadamente do Regime Geral das Contraordenações, quando se programa um sistema informático de forma a que este avalie condutas humanas e posteriormente as sancione com base nessa avaliação. Somos da opinião de que a tecnologia pode e deve estar ao serviço do Direito sancionatório, mas com limites. E os limites encontram-se precisamente onde o ser humano não pode ser substituído – na ponderação de factos, na determinação das medidas das sanções, na indicação com exatidão da medida da culpa do agente. Enfim, tudo o que tenha uma estreita ligação com a sociedade e com o decisor como indivíduo, com os sentimentos que neles se geram, com as dúvidas e com as certezas. Uma máquina não tem a capacidade de avaliar subjetivamente uma conduta humana e de avaliar os efeitos que determinada sanção vão ter nos indivíduos como membros de uma sociedade.

2.1 O Direito de audição e de defesa no procedimento contraordenacional A revisão constitucional de 1982 previu igualmente uma nova norma no que concerne aos direitos de audição e defesa dos arguidos, no respetivo art. 32.º, n.º 10, cuja epígrafe se manteve relativa às garantias de processo criminal (8). Os direitos do arguido, no domínio do procedimento contraordenacional, podem ser delimitados em três elementos constituintes da garantia de defesa, que no seu conjunto enformam o direito de audição e de defesa em sentido amplo, previstos no art. 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, especialmente, no art. 50.º do Regime Geral das Contraordenações, apesar da sua epígrafe (9): direito ao contraditório, direito de audiência e direito de defesa (10). A génese da garantia de defesa do arguido tem que ver com a consideração do arguido como um participante constitutivo do procedimento contraordenacional, não o entendendo como um mero objeto daquele procedimento. O direito ao contraditório implica que a atividade sancionatória da administração seja acompanhada da necessária audição do arguido previamente a qualquer ato impositivo. Esta audição, com um verdadeiro conteúdo ativo, pressupõe que a autoridade administrativa aceite, tendo em conta a concordância 8 «Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa». 9 A Gesetz über Ordnungswidrigkeiten, na sua secção 55 refere-se, ainda de forma mais sintética, à audição da pessoa acusada (anhörung des Betroffenen), ainda que o corpo da secção depois se refira à oportunidade da pessoa acusada de se pronunciar em resposta à acusação (Betroffenen Gelegenheit gegeben wird, sich zu der Beschuldigung zu äußern). 10 Conferir ainda, com as devidas adaptações, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, reimpressão - 1974, Clássicos Jurídicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 149–163.

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prática do princípio da proporcionalidade com o princípio da celeridade, a iniciativa probatória do arguido. A audição do arguido deve ser devidamente relevada, de forma a que o arguido possa, querendo, influir no decurso da atividade procedimental contraordenacional, não só no que concerne à decisão contraordenacional, mas também em relação a qualquer decisão impositiva, através da sua audição. Nisto consiste o direito de audição. O direito de defesa em sentido restrito implica que o arguido possa estar presente nos atos procedimentais relativos ao direito ao contraditório e o direito de audiência, (1) sendo notificado com a antecedência adequada, (2) do tempo previsto, modo e lugar apropriado em causa, (3) de que pode intervir, pronunciando-se sobre todos os factos que lhe são imputados assim como sobre a matéria de direito relevante para a decisão contraordenacional, e ainda apresentando as provas e os meios de prova que entenda relevantes para a sua defesa, e (4) no ato em causa tenha a possibilidade efetiva de intervir ativamente, por exemplo estando presente e tendo um desempenho ativo no inquirição das testemunhas arroladas por si. Por outro lado, cumpre referir que o direito de defesa em sentido amplo é um verdadeiro direito subjetivo e não uma mera faculdade da autoridade administrativa que o arguido, querendo aproveitar, deve requerer. Por isso, o seu desrespeito do Direito de audição e defesa em sentido amplo por motivos de celeridade procedimental gera a invalidade dos atos contraordenacionais impositivos posteriores. Finalmente, importa sublinhar que este direito subjetivo é um poder perante a autoridade administrativa que apesar de ser inerente ao arguido, se estende a qualquer outro indivíduo que tenha participação no procedimental contraordenacional e por via dessa participação possa ser objeto de algum ato impositivo, com ou sem conteúdo sancionatório. Neste caso, a violação deste direito subjetivo possibilita que o sujeito possa impugnar o ato posterior, através de recurso interlocutório previsto no art. 55.º do Regime Geral das Contraordenações.

2.2 O princípio da publicidade contraordenacional O princípio da publicidade implica que qualquer ato derivado dos poderes públicos não produza efeitos enquanto o respetivo destinatário não o conhece ou não tem a possibilidade de o conhecer (11). Nesse sentido, há uma proibição

11 Incluem-se aqui as entidades de Direito público por natureza e as entidades de Direito público por atribuição.

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de atos secretos dos poderes públicos (geheime Agieren der Verwaltung) dotados de eficácia externa (12). A publicidade em sentido amplo concretiza-se através de duas formas distintas, oficiais e formais, consoante a natureza jurídica do ato que é comunicado: publicação ou notificação. Em primeiro lugar, importa reter que a notificação tem de ser oficial. Por isso, só é eficaz a notificação efetuada no exercício de funções administrativas e por causa dessas funções administrativas. Não se compadece com este critério de oficialidade, a mera comunicação de atos através da comunicação social ou através de um funcionário com alguma proximidade com o destinatário, num ambiente informal de mera obsequiosidade. Uma comunicação efetuada em incumprimento deste caráter de oficialidade não cumpre o requisito de oficialidade. Se o ato comunicado não tem um destinatário individualizado, a publicidade há de ser efetuada sob a forma de publicação. A publicação pode efetuar-se, consoante os casos, no Diário da República, nos termos do art. 119.º, n.º 2, da Constituição, ou através de editais, plataformas eletrónicas, ordens de serviço, entre outras formas, como prevê o art. 159.º do Código de Procedimento Administrativo. No caso da publicação, ao contrário da notificação, prima facie, a ignorância do ato não é fundamento para a sua executoriedade. Por isso se costuma referir que a ignorantia legis non excusat. Porém, o conhecimento do ato normativo através de outros meios que não os dispostos na Constituição ou na lei, como a comunicação social, não produzem quaisquer efeitos. Em geral, tem-se entendido que a falta de publicação do ato normativo é fundamento para a sua ineficácia ou falta de produção de efeitos.

2.2.1 As finalidades e os requisitos formais da notificação no procedimento contraordenacional Em primeiro lugar, importa referir que a notificação tem finalidades informativas. A notificação consiste no instrumento formal e oficial que possibilita a produção de efeitos de um ato cujo destinatário está devidamente individualizado. Assim, nos atos administrativos, tendo em conta que o destinatário está, em regra, individualizado, o princípio da publicidade obriga que, para que não haja atos secretos, o ato seja levado ao conhecimento do destinatário determi-

12 Seguimos de perto Pedro Costa Gonçalves, «Notificação dos actos administrativos (notas sobre a génese, âmbito, sentido e consequências de uma imposição constitucional)», in Ab Vno ad Omnes - 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, Coimbra Editora, 1998.

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nado através da notificação (13). Neste caso, o princípio de que ignorantia legis non excusat já tem um alcance restrito. De facto, em regra, entende-se que, ao contrário da publicação, a notificação exige o efetivo conhecimento do ato por parte do seu destinatário, que pode ser alcançado com a prova da notificação efetuada na esfera de cognoscibilidade média do destinatário. Assim, este efetivo conhecimento, por razões de celeridade, pode ficcionar-se através de presunções, como acontece, por exemplo, no art. 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Por tudo o que foi dito, verifica-se que a publicidade está separada estruturalmente do ato de poder público, não se confundindo com o mesmo. De facto, a publicidade do ato de poder público não se confunde com o conteúdo do próprio ato. O ato, em si mesmo, é independente da forma de comunicação do mesmo. É por isso que um vício de forma no ato de comunicação não afeta o conteúdo do ato comunicado. Por outro lado, importa referir que o facto de o ato não ser objeto de publicidade, não implica que o poder estadual possa dispor do mesmo livremente. De facto, a partir do momento em que o ato está constituído, restando unicamente a publicidade do mesmo, o poder estadual tem (i) um dever de respeitar o ato, só o podendo alterar ou revogar nos termos gerais (14); e (2) um dever de transparência, possibilitando que o destinatário do mesmo aceda ao ato caso o pretender fazer. No que concerne ao Direito contraordenacional, assume-se, por ora, a importância do ato sancionatório – um ato do poder público sancionatório, cujo destinatário está individualizado e que, assim sendo, pretende cumprir finalidades sancionatórias, de prevenção geral e especial; por isso, este ato carece de ser notificado. Além da notificação ter finalidades informativas, não se deve esquecer que o mesmo ato tem finalidades adjetivas ou processuais. Neste sentido, (1) o prazo de impugnação (administrativa ou judicial) do ato comunicado só tem o seu início quando o ato é devidamente notificado, sob pena de haver uma violação da Constituição, em especial, do princípio do acesso ao Direito e o do princípio da proibição da indefesa. Aquele advérbio de modo implica que a notificação deve permitir uma reação consciente do destinatário do ato. Dito de outro modo, a notificação tem de garantir o efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo, em condições (i) seguras e (ii) idóneas, de forma a que o mesmo possa, queren13 Em princípio, os atos administrativos não são objeto de publicação, como indica o art. 158.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo. 14 Assim, a prática de atos que ainda não foram notificados impossibilita a formação de atos silentes.

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do, exercer os meios de reação legalmente previstos. As condições serão seguras quando está garantido de forma certa, por isso sem margem para dúvidas, de que o destinatário tem a possibilidade de tomar conhecimento do ato. As condições serão idóneas sempre que a notificação é efetuada em condições aptas ou adequadas a transmitir ao destinatário o ato em causa. Assim, não se verificam condições idóneas quando para ter efetivo conhecimento do ato, o destinatário tem de ler a notificação em causa e, cumulativamente, recorrer a outros suportes documentais, como plataformas informáticas, de forma a poder apreender completamente o ato contraordenacional. Da mesma forma, a notificação não é idónea quando a notificação não identifica sequer o número do procedimento ou a sua informação é de apresentada de tal forma, confusa, disforme ou com letra impercetível, por exemplo, que impossibilita uma leitura adequada do conteúdo da notificação. O preenchimento daqueles dois requisitos leva a que a forma da notificação do ato seja a adequada, sendo respeitado o princípio da proibição da indefesa constitucionalmente consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, no âmbito do acesso ao Direito e aos tribunais. Por outro lado, (2) os atos de notificação pode ter efeitos procedimentais constitutivos dos efeitos do ato do poder público. Assim, um ato que crie uma ordem ou sujeição do destinatário, como um ato de aplicação de sanção, só é obrigatório se o destinatário for notificado – só nessa altura o destinatário tem um dever. Dito de outra forma, a administração sancionatória só tem poderes para impor coercivamente o pagamento de uma coima ou o cumprimento de uma sanção acessória quando o ato contraordenacional de aplicação de sanção lhe for notificado – nessa altura já existe uma ordem ou sujeição e um dever. A notificação de atos dos poderes públicos cujos destinatários são individualizáveis, em especial dos atos sancionatórios e para-sancionatórios, está imposta na Constituição, por força do art. 268.º, n.º 3 (15). Face às finalidades informativas e procedimentais, verifica-se que a Constituição criou um verdadeiro direito subjetivo a ser notificado, não se ficando por um mero dever de notificar por parte do ente estadual. Por isso, o destinatário do ato tem sempre o direito de exigir a notificação, caso a notificação não seja previamente assegurada oficiosamente. Por outro lado, entende-se que aquele direito subjetivo implica que o risco de não se ser notificado nos atos impositivos, prima facie, corra por conta da entidade que tem aquele dever. O destinatário tem um direito a que o ato lhe seja transmitido em condições de ser efetivamente conhecido por ele. Ora, é o ente público que tem que garantir que a forma de notificação utilizada garante que o 15 Este art. 268.º foi alterado na revisão constitucional de 1989. Destaca-se a previsão da forma de notificação, agora a cargo do legislador ordinário. Na versão anterior não havia nenhuma referência à forma de notificação.

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ato entrou na esfera média de cognoscibilidade do destinatário. Havendo o risco de que o ato não chegou a entrar na referida esfera, o risco há de correr por conta da entidade pública, que deve provar que a notificação ocorreu perante aquela garantia de cognoscibilidade. Dito de outra forma, não é adequado impor-se ao destinatário a prova de um facto negativo no domínio de um direito subjetivo que é seu. Em suma, a forma da notificação deve assegurar que o ato deve chegar à esfera média de cognoscibilidade do destinatário uma vez que, de outra forma, se entende que a notificação ou falta dela torna excessivamente oneroso o acesso ao direito e à justiça. Os requisitos formais relacionam-se com a forma da notificação do ato sancionatório no procedimento contraordenacional (16), que pode revestir a forma oral ou escrita, podendo a forma escrita ser concretizada através de correspondência postal ou através de meios eletrónicos (17). Estudado o Regime Geral das Contraordenações, verifica-se que o mesmo nada diz quanto à forma das notificações. Assim sendo, entende-se que o legislador quis remeter os requisitos formais para a lei adjetiva penal, designadamente para o art. 113.º do Código de Processo Penal. Estudado este artigo, verifica-se que a forma mais comum de proceder à notificação é através do envio de correspondência postal. Quanto à correspondência postal, é útil lembrar que a mesma está juridicamente enquadrada, através de normas jurídicas vinculativas, quer pela entidade operadora que presta o respetivo serviço, quer pelos utentes que o utilizam, onde aqui se inclui a administração sancionatória. Nestes termos, vejamos as modalidades de envios de correspondência postal, definidas no Regulamento do Serviço Público de Correios, publicado no Decreto-Lei n.º 176/88 (18). Assim, nos termos do Decreto-Lei n.º 176/88, existem legalmente as seguintes modalidades de correspondência: I Correspondência sem tratamento especial: a entrega desta correspondência faz-se no recetáculo postal domiciliário do destinatário (19), como dispõe o art. 23.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento do Serviço Público de 16 Para já tratamos exclusivamente das notificações no procedimento contraordenacional, tomadas pelas autoridades administrativas, como dispõe o art. 46.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações. 17 É, por isso, afastada a notificação por edital, a não ser que o respetivo registo contraordenacional o preveja. 18 O qual, note-se, por força do seu art. 4.º, revogou em parte o «Regulamento do Serviço Público de Correios», Pub. L. No. Decreto de 14-06-1902 (1902). 19 O recetáculo postal está regulado no Decreto Regulamentar n.º 21/98.

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Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 1, do Regulamento do Serviço Público de Correios. II Correspondência com tratamento especial, sob registo: a entrega desta correspondência faz-se na morada indicada pelo remetente, como dispõe o art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Serviço Público de Correios. A entrega é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. III Correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção: nestas, nos termos do art. 30.º do Regulamento do Serviço Público de Correios, o remetente solicita no ato de registo que lhe seja enviado o aviso de receção. A entrega é efetuada ao destinatário ou outrem em nome deste (20) e é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4 do Regulamento do Serviço Público de Correios. IV Correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção a entregar em mão ao próprio destinatário (21): nos termos do art. 31.º do Regulamento do Serviço Público de Correios, o remetente solicita no ato de registo que a correspondência seja entregue em mão ao próprio destinatário. A entrega é efetuada ao destinatário (22) e é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do artigo 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A próxima ideia a reter é que o legislador não regulou outras modalidades de envio de correspondência física através do serviço público de correios. Por isso, a utilização de uma modalidade de envio de correspondência distinta das previstas no Decreto-Lei n.º 176/88 em matéria sancionatória contraordenacio20 Diferentemente, nos casos anteriores a entrega é efetuada no recetáculo ou na morada. 21 Modalidade afastada por princípio, desde 12 de fevereiro de 1976, por força do Decreto-Lei n.º 121/76. Porém, nos casos em que a lei previr expressamente esta modalidade, a mesma é obrigatória. 22 Diferentemente, nos casos anteriores a entrega é efetuada no recetáculo, na morada ou a outrem.

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nal deve ser relevada pelo tribunal, tendo em conta o comportamento do destinatário da notificação em causa e a inexistência jurídica da referida modalidade. Assim, a escolha do legislador em relação à forma das notificações do atos sancionatórios contraordenacionais envolve sempre uma dicotomia entre a celeridade do procedimento contraordenacional e a garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições (1) seguras e (2) idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos. Nestes termos, a notificação de um ato contraordenacional através de correspondência sem tratamento especial ou com registo simples não garante de forma certa que o destinatário teve a possibilidade de tomar conhecimento do ato na medida em que não comprova a receção da notificação pelo destinatário. Da mesma forma, a devolução à autoridade sancionatória de uma notificação enviada para a morada indicada pelo arguido, sem posterior consulta das bases de dados estaduais previstas no art. 236.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, seguida de nova notificação para as moradas constantes das referidas bases de dados, não pode suportar a presunção de notificação do ato contraordenacional, uma vez que a condição da segurança não foi preenchida. Também assim, não se garante com segurança o efetivo conhecimento do ato quando se prova nos autos que o arguido vive noutro local que não o inscrito em alguma bases de dados estaduais previstas no art. 236.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. As condições serão idóneas sempre que a notificação é efetuada em condições aptas ou adequadas a transmitir ao destinatário o ato em causa. Assim, não se verificam condições idóneas quando para ter efetivo conhecimento do ato, o destinatário tem de ler a notificação em causa e, cumulativamente, recorrer a outros suportes documentais, como plataformas informáticas, de forma a poder apreender completamente o ato contraordenacional. Da mesma forma, a notificação não é idónea quando a notificação não identifica sequer o número do procedimento ou a sua informação é de apresentada de tal forma, confusa, disforme ou com letra impercetível, por exemplo, que impossibilita uma leitura adequada do conteúdo da notificação. O preenchimento daqueles dois requisitos leva a que a forma da notificação do ato seja a adequada, sendo respeitado o princípio da proibição do indefeso constitucionalmente consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais. Sempre que a celeridade do procedimento contraordenacional assuma uma importância tal que comprime a garantia do efetivo conhecimento do ato contraordenacional, levando a que a garantia do efetivo conhecimento não seja efetivada ou sendo-o, ocorra em condições inseguras ou inidóneas, ocorre a violação do princípio da proibição da indefesa. Por outro lado, importa ressalvar que o equilíbrio entre a celeridade procedimental e as garantias do efetivo conhecimento do ato contraordenacional não pode significar uma autêntica probatio diabolica que torne praticamente im-

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possível ilidir uma presunção do efetivo recebimento da notificação, ou em que coloque sobre o destinatário um ónus excessivo de provar um facto negativo, isto é, de demonstrar que certa carta não foi recebida nem depositada, em determinado momento, no seu recetáculo postal. Por outras palavras, o risco de ausência ocasional ou de extravio da correspondência não pode deixar de estar presente na relação jurídica contraordenacional (23). Em termos abstratos, a notificação pode ter duas modalidades: a notificação pessoal ou a notificação não pessoal (24). Quanto à primeira, a mesma, também designada por notificação oral, é efetuada presencialmente, de viva voz, por um agente administrativo do órgão administrativo que emitiu o ato notificando, perante o destinatário desse ato. A notificação não pessoal divide-se em dois tipos de notificação: notificação por éditos e a notificação por via postal. A notificação por éditos, igualmente designada por notificação pública, tem um caráter excecional, só podendo ser utilizada quando o legislador contraordenacional expressamente o prever. Quanto à notificação postal, a mesma pode ser efetuada através de correspondência sem tratamento especial, vulgarmente chamada de notificação postal simples, correspondência com tratamento especial, sob registo, comummente designada por notificação registada, correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção, apelidada de notificação ou carta registada com aviso de receção, correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção a entregar em mão ao próprio destinatário, designada de carta registada com aviso de receção em mão e, finalmente, com a notificação eletrónica, que pode ser efetuada através de correio eletrónico por transmissão de dados em linha, ou pelo serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital, igualmente designada por notificação eletrónica ou por transmissão eletrónica de dados. Como já dissemos, estudado o Regime Geral das Contraordenações, verifica-se que o mesmo nada diz quanto à forma das notificações (25). Por isso, entende-se que o legislador quis remeter os requisitos formais para a lei adjetiva subsidiária, designadamente para o art. 113.º do Código de Processo Penal. Ana23 Note-se que «o distribuidor do servidor postal não pode considerar-se um funcionário público provido de fé pública», in Acórdão n.º 439/2012, João Cura Mariano (Tribunal Constitucional 2012). 24 O adjetivo pessoal é distinto do previsto para as citações no art. 225.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil. Neste sentido, ainda que no domínio tributário, veja-se, por exemplo, o art. 35.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e, numa vertente administrativa, o art. 112.º, n.º 1, alínea b), do Código de Procedimento Administrativo. 25 O que não se verifica em todos os domínios do Direito contraordenacional. Por exemplo, vejam-se a regras previstas no atual Código da Estrada, no art. 176.º do Decreto-Lei n.º 114/94, as quais têm um caráter especial, não sendo de aplicar por isso o art. 113.º do Código de Processo Penal.

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lisado este artigo, verifica-se que a forma mais comum de proceder à notificação é através do envio de correspondência postal. A questão que por ora se coloca é sobre a forma adequada de notificação: correspondência sem tratamento especial, correspondência com tratamento especial sob registo, correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção ou correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção a entregar em mão ao próprio destinatário. Quando o Regime Geral das Contraordenações entrou em vigor, o art. 113.º do Código de Processo Penal, no seu n.º 1, alínea b), impunha a notificação com aviso de receção (26). Por isso, nesta altura as notificações de atos contraordenacionais tinham de ser efetuadas com tratamento especial sob registo com aviso de receção. O art. 113.º do Código de Processo Penal teve uma nova versão em 1998, com a Lei n.º 59/98. Nesta alteração, o legislador pugnou contra a morosidade processual que na altura carecia de cuidado. Por isso, foi alterado o regime das notificações, afastando-se a necessidade de notificação com tratamento especial sob registo com aviso de receção. Assim, o legislador estabeleceu a regra de que o atos processuais são notificados por correspondência com tratamento especial sob registo. Nos casos especialmente previstos, a notificação passou a ser feita por via postal simples com prova de depósito, por força do art. 113.º, n.º 1, alínea c), e n.º 3, do Código de Processo Penal (27). Acontece que esta alteração tinha como pressuposto a prestação de termo de identidade e de residência do arguido, obrigatório aquando da respetiva notificação, nos termos do art. 61.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal. Após a prestação de termo de identidade e de residência, o arguido tinha conhecimento de que passava a ser notificado por via postal simples. Ora, no Regime Geral das Contraordenações não há termo de identidade e de residência, o que leva ao afastamento da aplicação do registo por via postal simples. Por outro lado, este registo, não previsto legalmente como já vimos, não comporta garantias suficientes da cognoscibilidade do ato pelo seu destinatário, uma vez que comprova exclusivamente que determinada correspondência foi 26 Era esta a redação decorrente do Decreto-Lei n.º 78/87: «1 - As notificações efectuam-se mediante: (…) b) Via postal, através de carta isenta de porte e expedida com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, o qual só pode ser assinado pelo destinatário, previamente identificado com anotação dos elementos constantes do bilhete de identidade ou outro documento oficial que permita a identificação». Este Decreto-Lei teve no seu espírito a simplificação do regime das notificações, como se extrai do seu preâmbulo e do art. 2.º, n.º 2, ponto 17.º, da respetiva Lei de autorização n.º 43/86. 27 Com um entendimento diferente mas com um resultado que a final concordamos, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08-07-2015, Artur Oliveira (Tribunal da Relação do Porto 2015).

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expedida em determinada data, deixando de parte a prova da colocação na esfera jurídica do destinatário (28). Em suma, o regime previsto no art. 113.º do Código de Processo Penal, no que concerne à notificação por via postal simples, não é aplicável no domínio do Regime Geral das Contraordenações, sendo de afastar a aplicação remissiva dos normativos penais por força do art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações (29). Resta-nos analisar a notificação através de correspondência com tratamento especial sob registo, com e sem aviso de receção. Comecemos pela última. Quanto à correspondência com tratamento especial, sob registo, como dispõe o art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Serviço Público de Correios, a entrega desta correspondência faz-se na morada indicada pelo remetente. A entrega é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Assim, verifica-se que não há a garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições seguras e idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos, uma vez que este tipo de correspondência tem como escopo a entrega na morada do destinatário e não na pessoa do destinatário. Quanto à correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção, verifica-se que a entrega na morada do destinatário é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência na morada do destinatário leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Note-se que a correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção não tem como escopo principal a certificação de que a correspondência foi entregue ao destinatário. Na realidade, na correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção há a imposição legal em se entregar a correspondência na morada do destinatário, recolhendo-se ainda a assinatura de quem procedeu à respetiva receção. Face a estas característi28 «O direito à notificação constitui uma garantia não impugnatória dos contribuintes, que se destina não apenas a levar ao seu conhecimento o acto praticado pela Administração Tributária como a permitir-lhes reagir contra ele em caso de discordância. (…) O registo simples, em que a única certeza que existe é que a expedição terá ocorrido em determinada data, não oferece suficientes garantias de assegurar que o acto de notificação foi colocado na esfera de cognoscibilidade do destinatário e acarreta um ónus desproporcionado por impossibilidade de ilisão da presunção de depósito da carta no receptáculo, quando existe risco de extravio, não podendo servir para fundar a presunção estabelecida no nº 1 do art. 39º do CPPT». Assim o sumário do Acórdão de 29-052013, Fernanda Maçãs (Supremo Tribunal Administrativo 2013). 29 Podendo este tipo de correspondência ser aplicado em regimes específicos, após tentativa de notificação por correspondência com tratamento especial sob registo, com aviso de receção.

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cas, verifica-se que pode não haver a garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições seguras e idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos. E pode não haver a referida garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário porque o destinatário do ato pode não chegar a ter conhecimento porque um terceiro acabou por assinar o referido aviso de receção. Finalmente, em relação à correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção a entregar em mão ao próprio destinatário, a entrega é comprovada por recibo assinado pelo próprio destinatário, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Neste caso há a garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições seguras e idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos. 2.2.1.1 Requisitos formais da notificação no procedimento contraordenacional tributário Sempre que determinado regime contraordenacional previr uma forma específica de notificação de atos contraordenacionais, aplica-se esse regime específico. É o caso do Regime Geral das Infrações Tributárias, como se verifica com a leitura do art. 70.º, n.º 2. Este art. 70.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, constitui uma exceção ao disposto no art. 3.º, alínea b), do mesmo Regime Geral das Infrações Tributárias, uma vez que remete expressamente para o Código de Procedimento e de Processo Tributário a matéria relativa à forma das notificações. As normas do Código de Procedimento e de Processo Tributário aplicáveis constam dos arts. 38.º e 39.º daquele diploma. No que concerne à forma da notificação, a mesma consta do art. 38.º do referido Código de Procedimento e de Processo Tributário. A regra é que as notificações são feitas «por carta registada», por força do art. 38.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Excecionalmente, as notificações podem ser efetuadas através de correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção, nos termos do n.º 1, e através de «simples via postal», nos termos do n.º 4, ambos do mesmo art. 38.º. Importa pois enquadrar cada tipo de forma de notificação no Regulamento do Serviço Público de Correio aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/88. A «carta registada» prevista no art. 38.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, corresponde à correspondência com tratamento especial,

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sob registo. Quer isto dizer que a carta registada simples não está regulamentada no Regulamento do Serviço Público de Correios, publicado no Decreto-Lei n.º 176/88. Não se desconhece que a jurisprudência tem acompanhado esta modalidade, integrando-a no leque de formas de notificação. Não é, todavia, a melhor interpretação. O Código de Procedimento e de Processo Tributário, no seu art. 38.º, não se refere à carta registada simples, nem tão-pouco o Regulamento do Serviço Público de Correios, publicado no Decreto-Lei n.º 176/88, regulamenta tal correspondência (30). Assim, a entrega da correspondência com tratamento especial, sob registo faz-se na morada indicada pelo remetente, sendo comprovada por recibo, nos termos do art. 23.º, n.º 1, alínea b), e do art. 28.º, n.º 4, ambos do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A correspondência entregue através de «simples via postal», nos termos do n.º 4, ambos do mesmo art. 38.º. do Código de Procedimento e de Processo Tributário corresponde à correspondência sem tratamento especial. Assim, a entrega desta correspondência faz-se no recetáculo postal domiciliário do destinatário, como dispõe o art. 23.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento do Serviço Público de Correios (31). A não entrega da correspondência leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 1, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Finalmente, a correspondência enviada por «carta registada com aviso de receção» corresponde à correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção. Neste caso, nos termos do art. 30.º do Regulamento do Serviço Público de Correios, o remetente solicita no ato de registo que lhe seja enviado o aviso de receção. A entrega é efetuada ao destinatário ou outrem em nome deste (32) e é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. A não entrega da correspondência 30 Aliás, se a correspondência registada simples prova que a correspondência foi enviada e depositada no recetáculo, também a regulamentada correspondência sem tratamento especial, o faz, uma vez que esta é marcada com a «marca do dia», composta pela data, hora e local de envio, e com a falta de devolução da mesma, tudo nos termos do art. 19.º e do art. 24.º, n.º 1, do Regulamento do Serviço Público de Correios, publicado no Decreto-Lei n.º 176/88. 31 A entrega no recetáculo não tem o mesmo significado que a entrega na morada. A entrega no recetáculo, na comum caixa de correio, implica uma menor probabilidade de cognoscibilidade da correspondência, em comparação com a entrega na morada. Basta pensar-se que a morada corresponde ao local onde se habita, enquanto a caixa de correio nem sempre corresponde ao local onde se habita. Grande parte das vezes, o recetáculo está deslocado da habitação, seja no domínio de imóveis constituídos em propriedade horizontal ou imóveis cuja caixa de correio está situada num local de mais fácil acesso ao funcionário que entrega a correspondência, como ocorre em várias vilas com uma distribuição de correspondência mais dificultada. 32 Diferentemente, nos casos anteriores a entrega é efetuada no recetáculo na morada ou a outrem, respetivamente.

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leva à sua imediata devolução, por força do art. 24.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Nos termos do art. 38.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o legislador impôs uma forma especial de notificação, a correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção, sempre que se esteja perante atos suscetíveis de alterarem a situação tributária ou se esteja perante a convocação para o destinatário assistir ou participar em atos ou diligências. A questão que se coloca é se o ato para-sancionatório ou sancionatório contraordenacional se enquadra em algum deste caso específico. Deve ser entendido como ato suscetível de alterar a situação tributária, o ato que cria ou restringe direitos ou deveres presentes ou futuros para os respetivos destinatários. Assim, no domínio contraordenacional, os atos para-sancionatórios e os atos sancionatórios que criam direitos do arguido, como a notificação para o exercício do direito de defesa previsto no art. 70.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, ou que restrinjam direitos, como a notificação da decisão de aplicação de coima, são atos que têm de ser notificados por correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção. Não é demais relembrar que a notificação da decisão de aplicação de sanção contraordenacional pode implicar não só o pagamento de uma coima, como também a aplicação de um extenso leque de sanções acessórias, como por exemplo a privação do direito de participar em concursos públicos, a perda de benefícios fiscais concedidos, a cassação de licenças ou concessões ou o encerramento de estabelecimento, nos termos do art. 21.º do Regime Geral das Contraordenações e do art. 28.º do Regime Geral das Infrações Tributárias. Por isso, em abstrato, a notificação para o direito de audição e de defesa e a notificação da decisão de aplicação de sanção são atos suscetíveis de alterar a situação tributária do destinatário, pelo que lhes é aplicável a forma de notificação prevista no art. 38.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (33). Acresce ainda que a aplicação da norma final do art. 38.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, para a qual a norma remissiva do art. 70.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias remeteu, deve ser efetuada

33 No mesmo sentido, ainda que entendido de forma diversa pela jurisprudência, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário - Volume I, 6.ª ed., vol. I, Lisboa, Áreas Editora, 2011, p. 371, nota 662. Em sentido contrário, no sentido de que a «decisão de aplicação de coima não afecta a situação tributária dada a sua natureza punitiva» e que a «notificação da aplicação da coima nos termos do art. 70 do RGIT basta-se com a emissão de carta registada simples», com um entendimento uniformizado, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-11-2015, Fonseca Carvalho (Supremo Tribunal Administrativo 2015).

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de uma forma «correspetiva» (34). Assim, mesmo que a norma remissiva não tenha referência a uma adaptação, deve o intérprete e aplicador de Direito entender que é sempre devido o respetivo ajustamento de acordo com a natureza de cada norma em questão. Ora, face às finalidades sancionatórias do Direito contraordenacional, só a notificação de atos sancionatórios através de correio registado com aviso de receção assegura que as finalidades do princípio da publicidade inerentes à notificação de atos contraordenacionais sejam cumpridas. Quanto aos atos em que se está perante a convocação para o destinatário assistir ou participar em atos ou diligências, são atos cuja finalidade é proporcionar ao destinatário a possibilidade de defesa dos seus direitos. Por isso, também por aqui, a notificação para o exercício do direito de defesa previsto no art. 70.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, ou a notificação da possibilidade de recurso contraordenacional da decisão de aplicação de coima é enquadrável nesta obrigação de notificação por correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção (35). 2.2.1.2 Notificações de atos contraordenacionais efetuadas por transmissão eletrónica de dados. Requisitos. Também no domínio das notificações eletrónicas, as finalidades informativas e as finalidades adjetivas ou processuais são constitucionalmente impostas. Aquele advérbio de modo implica que a notificação deve permitir uma reação consciente do destinatário do ato. Assim, a notificação tem de garantir o efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo, em condições (1) seguras e (2) idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos (36). As condições serão seguras quando está garantido de forma certa, por isso sem margem para dúvidas, de que o destinatário tem a possibilidade de tomar conhecimento do ato. As condições serão idóneas sempre que a notificação é efetuada em condições aptas ou adequadas 34 Seguindo Karl Larenz, isso significa que «os elementos singulares da previsão regulados mediante remissão e os da previsão a cuja consequência jurídica remete (…) devem pôr-se em relação uns com os outros, de modo a que aos elementos que devam ser considerados semelhantes se associe a mesma consequência jurídica, segundo a função de cada um e a sua posição na cadeia de sentido da previsão». Assim, em Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, trad. José Lamego, 3.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 365. 35 Contra este entendimento, erradamente de acordo com o nosso entendimento, Jorge Lopes de Sousa/Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, 4.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2010, p. 477. 36 Ainda que se associem outras dimensões, como a diminuição das despesas dos entes públicos e a (errada) diminuição do tempo que meia o envio da notificação e a sua receção. Conferir, a Proposta de Lei 41/XIII (2016), https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/ DetalheIniciativa.aspx?BID=40812.

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a transmitir ao destinatário o ato em causa. Assim, não se verificam condições idóneas quando para ter efetivo conhecimento do ato, o destinatário tem de ler a notificação em causa e, cumulativamente, recorrer a outros suportes documentais, como plataformas informáticas, de forma a poder apreender completamente o ato contraordenacional. O preenchimento daqueles requisitos leva a que a forma da notificação do ato seja a adequada, sendo respeitado o princípio da proibição do indefeso constitucionalmente consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais. A pedra de toque situa-se precisamente no alcance da celeridade procedimental sem com isso comprometer as garantias do efetivo conhecimento do ato contraordenacional por parte do seu destinatário. Sempre que a celeridade do procedimento contraordenacional assuma uma importância tal que comprime a garantia do efetivo conhecimento do ato contraordenacional, levando a que a garantia do efetivo conhecimento não seja efetivada ou sendo-o, ocorra em condições inseguras ou inidóneas, ocorre a violação do princípio da proibição da indefesa. Por outro lado, importa ressalvar que o equilíbrio entre a celeridade procedimental e as garantias do efetivo conhecimento do ato contraordenacional não pode significar uma autêntica probatio diabolica que torne praticamente impossível ilidir uma presunção do efetivo recebimento da notificação, ou em que coloque sobre o destinatário um ónus excessivo de provar um facto negativo. O cumprimento daqueles requisitos é assegurado, consoante o tipo de ato a notificar e a respetiva importância processual, através da correspondência com tratamento especial sob registo ou com a correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção. Ora, o facto de as notificações poderem ser efetuadas de forma eletrónica, não deve servir para fundamentar um aligeiramento das garantias de cumprimento das finalidades informativas e adjetivas. Assim, não é adequada a utilização de um qualquer princípio da equiparação de correspondência registada com e sem aviso de receção, como ocorre no art. 38.º, n.º 9, in fine, do Código de Procedimento e de Processo Tributário. E a razão é simples: é que a correspondência com tratamento especial sob registo é distinta da correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção. Na primeira, a entrega faz-se na morada indicada pelo remetente, como dispõe o art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Serviço Público de Correios, sendo a entrega comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Na segunda, nos termos do art. 30.º do Regulamento do Serviço Público de Correios, o remetente solicita no ato de registo que lhe seja enviado o aviso de receção. A entrega é efetuada ao destinatário ou outrem em nome deste e é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios. Porém, neste 114


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segundo caso, a assinatura do aviso de receção implica a assinatura pelo próprio destinatário, por familiar ou dependente do destinatário «ou por indivíduo especialmente auctorizado por escrito», de acordo com o disposto no art. 99.º, §1.º, alínea b), do Decreto de 14-06-1902. Em suma, as notificações eletrónicas devem permitir que, nos casos em que os atos devam ser notificados por correspondência registada com aviso de receção, haja a obrigatoriedade de se identificar, em linha e de forma atual, quem está a aceder à notificação e, para memória futura, quem acedeu à notificação. Esta identificação não é assegurada convenientemente com a imposição de uma mera palavra-chave, sendo necessário um mecanismo de identificação com recurso através de cartão de cidadão (que, de resto, já é perfeitamente possível). 2.2.1.3 As opções legislativas relativas às notificações de atos contraordenacionais tributários efetuadas por transmissão eletrónica de dados A transmissão eletrónica de dados iniciou-se através da utilização do correio eletrónico e do telefax. Com um caráter facultativo e sem qualquer referência à utilização da assinatura eletrónica, este regime não era aplicável a notificações que nos termos da lei tivessem de ser efetuadas através de correspondência regista com aviso de receção ou de liquidações de impostos periódicos. Posteriormente, foi criado o serviço público Via CTT e, mais recentemente, a morada única digital e o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital. Vejamos com maior pormenor, em primeiro lugar, a plataforma Via CTT.

A A caixa postal eletrónica, igualmente designada por plataforma ViaCTT A plataforma ViaCTT, doravante designada por caixa postal eletrónica, criada e gerida pelos CTT (Correios, Telégrafos e Telefones, hoje em dia com a firma CTT - Correios de Portugal, S.A.), foi prevista pela primeira vez no contrato de concessão entre o Estado português e os CTT, conforme o Decreto-Lei n.º 112/2006, em especial no seu art. 1.º (37). Posteriormente, a caixa postal eletrónica foi regulamentada através da Resolução do Conselho de Ministros 50/2006, onde se determinava, no seu n.º 3, a elaboração do «enquadramento legal da [caixa postal eletrónica], designadamente quanto à determinação da entidade 37 «O presente decreto-lei altera as bases da concessão do serviço postal universal, (…) e cria o serviço público de caixa postal electrónica». Este Decreto-Lei foi criado «nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 198.º da Constituição», ou seja, foi legislado no domínio da competência legislativa concorrente.

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responsável pela garantia da sua prestação enquanto serviço público e quanto à forma e aos efeitos das comunicações a realizar por este meio». No mesmo Decreto-Lei n.º 112/2006, na base XI, n.º 2, o legislador impunha a regulamentação própria posterior nas situações em que havia especiais exigências legais no domínio público do serviço de caixa postal eletrónica. Ora, a caixa postal eletrónica nunca teve um enquadramento legal que versasse sobre a forma e aos efeitos das comunicações ou que regulasse as especiais exigências legais no domínio público do serviço de caixa postal eletrónica, maxime em relação às notificações cujo ordenamento impusesse a forma através de correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção. Entendemos estas especiais exigências como, por exemplo, as regras de garantia, de segurança e de privacidade do sistema informático, nomeadamente garantindo a comprovação da data e hora de disponibilização efetiva das notificações, a autenticação individual do destinatário e a segurança e privacidade do conteúdo das notificações, ou seja, do ato notificado. A nosso ver, estas matérias não são passíveis de serem normativizadas através de ato regulamentar nem, tão-pouco, através de decreto-lei sem autorização. De facto, são matérias enquadradas nos direitos de liberdade, nos termos do art. 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, na medida em que comportam dados pessoais sensíveis. Ora, o Decreto-Lei n.º 112/2006 foi criado «nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 198.º da Constituição», ou seja, foi legislado no domínio da competência legislativa concorrente, pelo que o mesmo, neste ponto, estava ferido de inconstitucionalidade formal e orgânica. Por outro lado, a caixa postal eletrónica acabou por estabelecer um princípio de equiparação entre a correspondência registada com e sem aviso de receção à correspondência comunicada através daquela plataforma. Ora, se na correspondência registada com aviso de receção a entrega é efetuada ao destinatário ou outrem em nome deste e é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios, sendo que a assinatura do aviso de receção implica a assinatura pelo próprio destinatário, por familiar ou dependente do destinatário «ou por indivíduo especialmente auctorizado por escrito», de acordo com o disposto no art. 99.º, §1.º, alínea b, do Decreto de 14-06-1902, já a autenticação na caixa postal eletrónica é passível de ser efetuada através da introdução de uma simples palavra-chave, sem qualquer identificação civil. Inicialmente, as notificações em causa tornavam-se perfeitas (1) quando o utilizador da plataforma acedia à sua conta, ou (2) no vigésimo quinto dia

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posterior ao envio da notificação, caso aquele acesso não ocorresse antes (38). Atualmente, as notificações tornam-se perfeitas no quinto dia após o envio da notificação. A escolha do legislador em relação à forma das notificações do atos envolve sempre uma dicotomia entre a celeridade do procedimento contraordenacional e a garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições seguras e idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos. As condições serão seguras quando está garantido de forma certa, por isso sem margem para dúvidas, de que o destinatário tem a possibilidade de tomar conhecimento do ato. Assim, a notificação de um ato através da caixa postal eletrónica sem a obrigação de o utilizador da mesma se identificar através de cartão de identificação civil não garante de forma certa que o destinatário tem a possibilidade de tomar conhecimento do ato na medida em que não comprova a receção da notificação pelo destinatário. A falta do preenchimento deste requisito leva a que, nos casos em que não se prova quem acedeu à plataforma, a forma da notificação do ato não seja adequada, sendo desrespeitado o princípio da proibição do indefeso constitucionalmente consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais. Finalmente, cumpre referir que a caixa postal eletrónica passou a constituir o domicílio fiscal, podendo por isso servir de recetáculo para a receção de notificações de conteúdo para-sancionatório e sancionatório, por aplicação do art. 38.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário ex vi art. 70.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias.

B A morada única digital e o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital Recentemente, a Assembleia da República através da Lei n.º 9/2017, no seu art. 1.º, autorizou o Governo a: «a) Criar a morada única digital; b) Criar o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital; c) Regular o envio e a receção de notificações eletrónicas através do serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital». O Governo concretizou aquela autorização legislativa através do Decreto-Lei n.º 93/2017, «no

38 A caixa postal eletrónica possibilitava igualmente o encaminhamento de um aviso para um endereço de correio eletrónico à escolha do utente. Porém, este serviço tinha unicamente um caráter de mera obsequiosidade, não permitindo a produção de quaisquer efeitos jurídicos.

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uso da autorização legislativa concedida pela Lei 9/2017, de 3 de março, e nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 198.º da Constituição» (39). Em termos breves, aquele Decreto-Lei criou a morada única digital, a qual passou a servir de recetáculo para a receção de notificações de conteúdo para-sancionatório e sancionatório, por aplicação do art. 38.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário ex vi art. 70.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias. A morada única digital é composta pelo endereço de correio eletrónico que for comunicado pelo utente para esse efeito, sendo que a escolha deste endereço eletrónico cabe unicamente ao utente. A par desta morada única digital, o Decreto-Lei estabeleceu o canal comunicativo eletrónico obrigatório entre as entidades notificantes e notificadas, com exclusão dos atos comunicados pelos tribunais, o que chamou de serviço público de notificações eletrónicas, nos termos do art. 3.º, n.º 4. Assim, este serviço público de notificações eletrónicas, em ligação estrita com a morada única digital, constitui um novo domicílio administrativo, equiparado ao domicílio das pessoas físicas ou à sede das pessoas jurídicas, sendo por isso o único domicílio eletrónico para todos os órgãos da administração pública, nos termos do art. 3.º, n.º 5, e art. 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei em causa. Associado ao serviço público de notificações eletrónicas vai existir um sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas. Este sistema, regulado parcialmente pela Portaria n.º 265/2017, tem como função: (1) a efetivação da notificação, através do acesso à mesma e ao seu conteúdo; (2) garantir a confidencialidade do destinatário e do conteúdo notificado; (3) a autenticidade da notificação; (4) o registo cronológico da disponibilização da notificação; (4) o registo e comprovação do assunto da notificação e da entidade notificante; (5) o registo dos dispositivos eletrónicos utilizados para consultar cada notificação. No que concerne à garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo este sistema completo de notificações, composta pela morada única digital e pelo sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas, permite a efetivação das notificações nos seguintes termos: (1) as notificações são efetuadas pelo sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas; (2) as notificações são copiadas e reencaminhadas para a morada única digital, sendo que este reencaminhamento, seja feito com sucesso ou não, não produz qualquer efeito na perfeição das notificações. 39 A publicação deste decreto-lei ao abrigo de uma lei de autorização vem suportar o nosso entendimento de que a caixa postal eletrónica dos CTT comportou graves riscos no que concerne ao direito dos destinatários dos atos administrativos sancionatórios em conhecer efetivamente os atos que lhes digam respeito.

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No que concerne à garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições seguras e idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos, este sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas obriga a que a autenticação do utilizador seja efetuada através de cartão do cidadão, chave móvel digital, certificado digital ou outro meio reconhecido nos termos do Regulamento da União 910/2014, nos termos do art. 3.º, n.º 3, e do art. 9.º, n.º 2, ambos da Portaria n.º 265/2017. Finalmente, em relação à perfeição das notificações, as mesmas consideram-se eficazes no quinto dia posterior ao registo de disponibilização da notificação no sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas, nos termos do art. 8.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 93/2017, não bolindo com aquela presunção a falta de entrega da notificação na morada única digital ou a falta de acesso ao sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas por parte do utente. A presunção é ilidível, caso a falta de notificação tenha ocorrido em virtude de bug do sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas, nos termos do art. 8.º, n.º 4, do mesmo Decreto-Lei. O Decreto-Lei n.º 93/2017 alterou diversos diplomas de caráter tributário, onde se destaca a Lei Geral Tributária e o Código de Procedimento e de Processo tributário, sempre no mesmo sentido: (1) o domicílio fiscal compreende igualmente o domicílio fiscal eletrónico, o qual pode consistir na caixa postal eletrónica, reconhecida usualmente por ViaCTT ou no sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas; (2) este sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas tem primazia sobre qualquer outro sistema de notificações, onde se inclui a caixa postal eletrónica ViaCTT, nos termos do art. 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 93/2017; (3) mal o utente se registe no sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas, pode passar a ser notificado e citado através dele; valendo essa notificação, consoante os casos, como correspondência com tratamento especial sob registo ou como correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção; e a citação como citação pessoal. Acontece que, apesar daquelas alterações legislativas tributárias entrarem em vigor a 1 de julho de 2017, o sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas tinha de esperar pela respetiva regulamentação, por força do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 93/2017. Ora, esta regulamentação ocorreu com a publicação da Portaria n.º 365/2017. Porém, esta portaria prevê que o sistema informático de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas esteja disponível através de um sítio em linha e através de uma aplicação de software, o que até ao momento não se verificou.

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Assim, e em termos simples, as notificações eletrónicas continuam a ocorrer através da caixa postal eletrónica ViaCTT e ainda, desde 1 de janeiro de 2019, através do próprio portal das finanças. Vejamos esta norma forma de notificação e citação pessoal. C A notificação de atos contraordenacionais através do «portal das finanças» Através da Lei n.º 71/2018, o legislador tributário resolveu criar mais uma forma de notificação de atos tributários e de atos para-sancionatórios tributários e sancionatórios tributários, através do «portal das finanças», nos termos do art. 38.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário. A intenção do legislador é que os utentes que não se tenham inscrito na caixa postal eletrónica ViaCTT e que a isso estavam obrigados e os que apesar de terem caixa postal eletrónica ViaCTT e a tenham comunicado à administração tributária, optem pelas notificações e citações através do portal das finanças, passem a ser notificadas e citadas através desse mesmo portal. Esta opção pode ser alterada pelo utente, a partir do momento em que esteja regulamentada, o que até ao momento não ocorreu. Mais uma vez, o legislador prevê que o utente passa a ser notificado e citado através do portal, valendo essa notificação, consoante os casos, como correspondência com tratamento especial sob registo ou como correspondência com tratamento especial sob registo com aviso de receção, e a citação como citação pessoal. Também aqui o legislador, através do portal das finanças, acabou por estabelecer um princípio de equiparação entre a correspondência registada com e sem aviso de receção à correspondência comunicada através daquela plataforma. Ora, se na correspondência registada com aviso de receção a entrega é efetuada ao destinatário ou outrem em nome deste e é comprovada por recibo, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do Regulamento do Serviço Público de Correios, sendo que a assinatura do aviso de receção implica a assinatura pelo próprio destinatário, por familiar ou dependente do destinatário «ou por indivíduo especialmente auctorizado por escrito», de acordo com o disposto no art. 99.º, §1.º, alínea b), do Decreto de 14-06-1902, já a autenticação no portal das finanças é passível de ser efetuada através da introdução de uma simples palavra-chave, sem qualquer identificação civil. Como já afirmamos, a escolha do legislador em relação à forma das notificações do atos envolve sempre uma dicotomia entre a celeridade do procedimento contraordenacional e a garantia do efetivo conhecimento do ato por parte do destinatário do mesmo em condições seguras e idóneas, de forma a que o mesmo possa, querendo, exercer os meios de reação legalmente previstos. As condições

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serão seguras quando está garantido de forma certa, por isso sem margem para dúvidas, de que o destinatário tem a possibilidade de tomar conhecimento do ato. Assim, a notificação de um ato através do acesso ao portal das finanças sem a obrigação de o utilizador do mesmo se identificar através de cartão de identificação civil não garante de forma certa que o destinatário tem a possibilidade de tomar conhecimento do ato na medida em que não comprova a receção da notificação pelo destinatário. A falta do preenchimento deste requisito leva a que, nos casos em que não se prove quem acedeu ao portal, a forma da notificação do ato não seja adequada, sendo desrespeitado o princípio da proibição do indefeso constitucionalmente consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição, no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais. As notificações em causa tornam-se perfeitas no quinto dia posterior ao envio da notificação. Finalmente, cumpre referir que o portal das finanças não constitui o domicílio fiscal, nos termos do art. 19.º da Lei Geral Tributária.

3. Conclusões O equilíbrio entre a celeridade procedimental e, já agora, motivos financeiros (40), não pode ter como consequência a restrição da medida das garantias do Direito de audição e de defesa do procedimento contraordenacional e ainda do efetivo conhecimento do ato impositivo contraordenacional. De facto, a celeridade procedimental não pode significar a compressão desproporcional do direito de defesa em sentido amplo, colidindo dessa forma com um verdadeiro direito subjetivo do arguido. Por isso, o seu desrespeito do Direito de audição e defesa em sentido amplo por motivos de celeridade procedimental gera a invalidade dos atos contraordenacionais impositivos posteriores. Por outro lado, o princípio da celeridade procedimental não deve colidir com o direito subjetivo do arguido a um efetivo conhecimento dos atos contraordenacionais, nem tão pouco contribuir para uma autêntica probatio diabolica que torne praticamente impossível ilidir uma presunção do efetivo recebimento da notificação contraordenacional, ou que coloque sobre o destinatário um ónus excessivo de provar um facto negativo; isto é, de demonstrar que certa carta não foi recebida nem depositada, em determinado momento, no seu recetáculo postal. Por outras palavras, o risco de ausência ocasional ou de extravio da correspondência não pode deixar de estar presente na relação jurídica contraordenacional, sendo que esse risco deve correr por conta da respetiva entidade que 40 Veja-se o Decreto-Lei n.º 121/76 que eliminou «em todos os processos, qualquer que seja a sua natureza ou espécie», a notificação com aviso de receção por «necessidade de compressão das despesas públicas».

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notifica, desde que o interessado prove que não foi notificado por facto que lhe é inimputável.

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Título

Direito e Pessoa no Mundo Digital - Algumas Questões

Autores

Anabela Susana de Sousa Gonçalves | Francisco Andrade | Joana Covelo de Abreu José C. Vegar Alves Velho | Margarida Santos | Sónia Moreira | Tiago Lopes de Azevedo

Coordenadores

Luís Couto Gonçalves | Cristina Dias | Sónia Moreira | Flávia Noversa Loureiro

Edição

Escola de Direito da Universidade do Minho Centro de Investigação em Justiça e Governação

Data

Julho 2019

ISBN

978-989-54194-9-4


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